Escavações Sensíveis dos Bastidores da Cena a Espetacularidade do Palco (ETDUFPA)


Assim como a História, o próprio ser humano é uma possibilidade.
Ninguém nasce bandido, ninguém nasce santo.
Ninguém nasce sequer humano, arriscaria eu no sentido cultural da palavra humano:
humano como um ser dotado de inteligência,
a quem se atribui racionalidade.(...)
Melhor que falar em natureza humana é falar em condição humana.
Somos filhos do tempo, da cultura e dos processos educativos que as sociedades criam e recriam.
“Húmus” que podem fecundar ou apodrecer.

(Chico Alencar)


Há um infinito em cada vida.
As vidas, todas elas, carregam consigo traços de ontem, um universo em cada ciclo.
Penso nisso porque preciso escrever... escrever sobre pessoas, acontecimentos, histórias, sentimentos. Preciso escrever sobre teatro.
A experiência de voltar a escrever me coloca defronte a fantasmas. Alguns aparentemente distantes e há tempos adormecidos, outros tão reais e tão presentes que estão inclusive bem aqui, ao lado, apreciando essa teimosa ousadia em desafiá- los.
O ato de escrever sempre soou a mim como um ensaio de vôo. É! Desses vôos nos quais a gente se lança pela simples necessidade de voar. Não essencialmente por quem viaja conosco, nem tão pouco pelo pouso no destino pretendido, mas, sobretudo, pela brisa que avança fresca embaraçando os cabelos e provocando os músculos da face até o riso vencer.
Mas em que memórias, espectros, pessoas e vôos têm a ver com teatro?
Talvez nada, muito ou tudo, dependendo do olho que vê e da mão que recorta e cola. Pode, inclusive, parecer embaraçoso o caminho que escolhi. Talvez, mas vou por ele.
Com certa freqüência faço um determinado percurso a pé até chegar a esta escola. O faço pela gratificante possibilidade de apreciação da cena urbana que nos circunda e por mim é tida como expressivamente poética. Nessas tantas andanças cotidianas aprecio gente... gentes, carros, jardins, placas, comércio, ouço música e algumas vezes algo, de súbito, me “rouba” a atenção e me convida a olhar, olhar como o filho conduzido pelas mão do pai até o grande mar de que fala Galeano.
Em algumas dessas costumeiras caminhadas acompanhei, com a parca proximidade de um observador, um edifício na sua construção palmo a palmo, do que me foi dado como possibilidade de visão e sensação. Dia - a- dia, sem ainda me dar o quanto, a curiosidade me levava pelo braço a fazer o mesmo caminho, sem pressa, tornando o trajeto Bernal do Couto - Dom Romualdo Coelho - Jerônimo Pimentel o mais delicioso e provocante de todos; para interrogar o nascente edifício em sua composição, fitá-lo na escolha dos materiais, revestimentos e cores que pouco a pouco foram surgindo. E sem que o projetista e os operários da obra o soubessem acompanhei os detalhes por certo mais “insignificantes” que deu a forma do Village Maximum o edifício ao qual me reporto, situado às proximidades dessa sala de aula.
O Maximum realmente faz jus ao nome. É grandioso, soberbo, imponente, mas abriga no subsolo do seu fundamento primeiro, na base de seu alicerce, pedaços de gente: de quem o pensou, de quem o projetou, de quem o erigiu, de quem o comercializou, de quem nele vai viver e para quem ele será motivo de especial apreciação. O lugar, já em seu nascedouro, guarda vozes contidas, choros solitários, descobertas, desilusões, medidas, dívidas emocionais, dúvidas e certezas. Nas portas, janelas e nos ladrilhos que foram sendo colocados um a um com a maestria de um fazer notável, humanamente criterioso e tecnicamente vistoso, a feitura do prédio se deve a um verdadeiro artista ou vários que foram se dando, se colocando como a própria estrutura que ganhou a espetacularidade de meu olhar transeunte. E é exatamente por isso que escolhi como ponto de partida das minhas análises sobre arte, teatro, teatralidade, gente(s) um edifício... esculpido no bojo de muitas vidas para a minha “audaciosa” apreciação artística: Eu expectador, Ele espetacular.
Sou aluna do 2º ano do Curso Técnico de Formação em Ator da ETDUFPA e hoje sou convidada a vivenciar a sistematização de um longo, árduo e largo inventário que empresta o nome à teoria do teatro “in locu”. Esse ato plenamente motivado me remete a visitar as histórias pessoais de tantos atores e atrizes em formação acadêmica como eu, em sua estrutura de raíz, como as bases do artefato que elegi por fio condutor, o Maximum.
Escrever talvez seja isso: visitar memórias, comover-se com elas e devolver ao que lê- aquele que divide nossa idéia ao meio- uma sensação, uma observação, um sorriso, uma saudade que se escondem no andar subterrâneo do edifício da alma, um dossiê textual louco, solitário, individual e ao mesmo tempo tão universal. Um encontro, destroços, beijos, suspiros, uma lágrima, um coro dividido em partes que eu pretendo contar numa viagem com tesoura e cola
[2] pelo viés delicado da existência de seus protagonistas, verbalizada e revisitada ao longo desse percurso formativo.


[1]Eduardo Hughes Galeano nasceu em Montevidéu no dia 3 de setembro de 1940, é um jornalista e escritor uruguaio. Suas obras já foram traduzidas em diversas línguas. Costuma escrever seus livros no formato de pequenas histórias que contempla desde assuntos políticos relevantes na história da América Latina até assuntos simples, como o cotidiano e o futebol. Galeano é comparado a John Dos Passos e Gabriel García Márquez.

[2] Prefácio do livro O trabalho de citação de autoria de Antoine Compagnon, editora UFMG, (s.d)


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