O IMAGINÁRIO INFANTIL: DIÁLOGOS DE MARGEM E TRAVESSIA










Por Rosilene da Conceição Cordeiro[1]

“Uma história bem inventada e bem contada por ti vale a vida, vale risada, vale a pena existir. Quem canta um conto, aumenta um ponto na trajetória de se conhecer através dos personagens, quem uma história traz pra você. São viagens do pensamento, pelas imagens que a história contém. Sonhos através dos tempos, movimentos que vão e vêm.”

(Quem canta um conto. Bia Bedran)

Considero o imaginário infantil como uma pequena canoa pilotada por um exigente e criterioso navegador. Dentro dela um acervo indescritível de elementos variados, baú colorido de diferentes, formas, tamanhos e texturas, todos eles passiveis de relações entre si que, ao serem acionados pelo grande mar da criatividade, movem-se rapidamente na busca uns dos outros, como ondas leves e velozes, compondo diferentes enredos e cenários à margem dos rios dos sonhos da infância. Pedaços-inteiros de coisas que habitam o baú pessoal que cada criança carrega consigo como bagagem-brinquedo, onde quer que vá, nessa viagem pessoal que faz a todo instante pelas correntezas da existência-poema.

Esse bauzinho mágico, objeto precioso, está sempre recheado de novidades multicores e, apesar de parecer plenamente preenchido de tudo que ela acredita como sua verdade, comporta sempre mais informações que julgue importante levar consigo, próximo ao corpo, dentro da sua mente viçosa e de seu coração peralta e aventureiro sempre disposto ao grande mar que vê ao longe, um horizonte convidativo e misterioso que almeja descobrir. Ajunta uma coisa ali, outra acolá, guarda com cuidado. Entre uma palavra, um som, uma imagem ou gesto pode está aquilo que procura com avidez sem o saber exatamente, mas que, de repente, como num passe de mágica, faz todo sentido para ela, recheando de novidade todo seu existir com a ternura da hora presente como tesouro descoberto. E este pequeno e experiente piloto está sempre disposto a compartilhar com os outros o objeto de seu desejo e encanto, toda vez que aporta onde a ludicidade o convida a ir e permanecer.

Metaforicamente a imagem do viajante, do transporte e da viagem expressam bem o que acredito ser o papel da Literatura na vida de uma criança, ou melhor, de todas as diferentes crianças tocadas pela maestria da palavra polissêmica ornada artisticamente pela linguagem literária! Numa criança, indistintamente, existem todas as possibilidades de trajetos por lugares, tempos e contextos variados onde estão abertos todos os canais de entrada e permanência destas necessitando, tão somente, que insuflemos a vela do seu interesse e o desejo de seguir navegando entre as histórias com as quais se deparam para dentro e para além dos livros que manuseiam ou das vozes que lêem despretensiosamente para elas.

Para um adulto por certo é difícil compreender e catalogar as inúmeras relações que uma criança estabelece num simples “passeio sonoro” que faz, traduzido num gosto que pode seguir com ela como algo de sua pertença, mais um elemento que será guardado no baú da memória, como jóia fina e delicada que representa.

O acervo vivencial de uma criança é esse campo fértil no qual o diálogo entre ficção e realidade vai se estabelecer por meio da criatividade pessoal contribuindo para a formação de sua identidade humana, desaguando em sua competência leitora e gráfica, posteriormente, sem que inicialmente seja necessário estabelecer isso como objetivo, tudo alinhavado pela criatividade infantil despertada e fortalecida na tenra idade, por meio de diferentes textos oferecidos “gratuitamente” a ela.

De acordo com Ostrower (2008) a natureza criativa emerge no humano e se elabora no contexto individual e cultural no qual este se insere. Criar corresponde, assim, ao que formamos, a alguma coisa a qual damos forma; e sejam quais forem os modos e os meios, ao criarmos algo sempre o ordenamos e o configuramos segundo os pressupostos que a criação nos dá a conhecer, que lentamente nos desvela. A mediação ocorre, portanto, por meio das simbolizações, das intuições que vão se estruturando junto às experiências que a memória auxilia a organizar por uma questão vital que a natureza lhe apresenta. Nessa busca de ordenações e de significados reside a profunda motivação humana de criar. Trata-se, pois, de possibilidades, potencialidades do humano que se convertem em necessidades existenciais. (p. 08)

A infância deve ser entendida, assim, como este estágio de desenvolvimento humano primoroso em que por meio dos sentidos e das sensações corporais a criança para a conhecer e desbravar concretamente o mundo a sua volta e desta forma, merece um olhar especial sobre suas necessidades e interesses imediatos. Aos mediadores dessa aprendizagem é necessário abertura em profundidade para compreenderem o papel e o limite da ação pedagógica para não coibirem descobertas importantes que a criança precisará fazer sozinha, por meio da fruição do seu corpo-sujeito na relação com o tempo-espaço em que se situa dialogando com o contexto das histórias que se abrem diante delas, como vento a segredar-lhes sentimentos e emoções curiosas.

O alargamento do seu repertório informativo precisa dar-se cada vez mais próximo desse momento em que ela deseja explorar sinais, códigos, imagens, sons, muito mais que as letras em si, o que virá com o tempo e quando o desejo de seguir viagem sozinha chegar, e sempre chega. Tudo deve ser pensado sem pressa, com base no corpo infantil que deseja experimentar as diferentes formas de navegar, por meio desse corpo cotidiano, que interroga com as mãos, sugere com os olhos, reprime com os pés, guarda com o ouvido, devolve e salienta com a boca, cheira problemas e hipóteses necessárias à aprendizagem, numa brincadeira divertida de esconde-esconde, onde os papéis se revezam vez ou outra: ora como leitor, ora como contador. “Corpinho” alinhavado de sentidos subterrâneos, dos quais outros códigos emergem sempre pulsantes e exclamativos.

O prazer pela literatura é algo que deve ser plantado bem cedo, num tempo em que a criança está plenamente receptível a essa demanda. De acordo com Diniz (2011) Educação Infantil tem um papel decisivo na formação desse gosto uma vez que,

Cabe à Educação Infantil abrir oportunidade para que a literatura faça parte do cotidiano das crianças incitando uma assimilação prazerosa dos livros e suas narrativas, já que a pessoa que lê com freqüência desperta a sensibilidade, tornando-se mais apta a enfrentar os desafios do mundo contemporâneo e a dialogar com eles. (p. 04)

Diferentes são as viagens, como diferentes são os viajantes. Assim a Literatura oportuniza aportar em conceitos e dinâmicas que oportunizem esse contato lúdico, carinhoso e substancial ao desenvolvimento da criança em sua dimensão humana e social, estabelecendo conversas com o tempo e o espaço em que ela se situa, conectando-a a história universal por meio de variadas histórias que vão compondo sua bagagem vivencial, preenchendo o bauzinho imaginário que é o tesouro que a eleva e a define como rei, rainha, encantado, mágico, navegador, dragão, super-herói, entre outras identidades que proponha embarcar com ela rumo ao sonho, pelo viés da poiésis[2] infantil.

REFERÊNCIAS

DINIZ, Mariana Rosalina de Faria Vasconcelos. Era uma vez... é hora de resgatar o prazer. (in) Núcleo Marista de Educação á Distância. Texto sugerido no Curso Infâncias: Leitura e Literatura Infantil: Fantasias, Narrativas e Histórias. Agosto, 2011. Disponível em http://ead.marista.edu.br/, acessado em 19/08/2011.

OSTROWER, Fayga. Criatividade e processos de criação. 22. Ed. Petrópolis: Vozes, 2008.

.


[1] Pedagoga e atriz pela Universidade Federal do Pará. Pós-graduanda em Estudos Contemporâneos do Corpo pelo Instituto de Ciências da Arte da UFPA. Cursista de EAD no Curso de Infâncias- Leitura e Literatura Infantil: Fantasias Narrativas e Histórias. Docente de Sentido religioso/ Ensino Religioso na Educação Infantil e Ensino Fundamental do Colégio Marista Nossa Senhora de Nazaré em Belém/ PA.

[2] Entendido aqui como processo criativo.

Comentários

Postagens mais visitadas