Entre árvores, correrias e jogos de faz-de-conta: a captura da infância nos versos



Por Rosilene da Conceição Cordeiro[1]

enelisorcordeiro@yahoo.com.br


[...] É necessário pra mim este pão dos contos, dos cantos. [...] Eu com minhas mãos devo chamar: Venha qualquer um. Aqui está o que tenho, o que devo. Ouçam a conta, o conto e o som. Assim cada manhã de minha vida. Trago do sonho outro sonho. (Pablo Neruda)


É bastante remoto o ingresso da literatura na minha vida, e inusitado, de certo modo. Filha de pais com nenhum conhecimento de causa e com baixa escolaridade - não me consta que meus pais tivessem tido acesso a livros literários nas escolas que frequentaram- cresci num ambiente onde a brincadeira com irmãos e primos no fundo do quintal, em árvores frutíferas que dispúnhamos com fartura no sítio do vovô e a confecção de brinquedos improvisados com sucatas e outros parcos materiais a que tínhamos acesso, eram as nossas grandes atrações na infância.

Dos livros só conhecia os didáticos, na escola, oferecidos sempre sob a égide da leitura semanal obrigatória, das tarefas a aprender e cumprir em prazos definidos; com um certo ar de sacralidade que só nos permitia “desbravá-los” sob a regência de uma professora metódica e tecnicamente disciplinada para não nos deixar avançar nas páginas, naquilo que pudesse ser objeto de nosso interesse imediato. Não me recordo também, se tive, antes dos 09 anos de idade, alguma relação prazerosa em sua leitura despretensiosa, livre, sem o subjugo de tempo espaço educativo.

O faz-de-conta das brincadeiras que inventávamos longe dos adultos, os momentos de riso fácil e o tempo sem tempo da descoberta, eu só conhecia dos encontros diários com os coleguinhas da vizinhança e dos periódicos que fazia em família à casa dos avós paternos. Disso a escola parecia saber muito pouco ou quase nada de mim. Muito pouco mesmo do que aprendia na escola parecia falar da minha vida e das coisas que queria aprender naquela época, com as crianças da minha idade, acima de tudo. Passado o tempo de retorno às aulas, do cheiro do caderno novo e do material na pasta que carregava sempre abarrotada de expectativas, tudo transcorria numa rotina linear fria, em preto em branco, sóbria demais para uma mente e um corpinho colorido e sapeca típicos da efervescência infantil.

Nesse ínterim vivíamos: eu e as “minhas coisinhas” de um lado; a escola, seus conteúdos, objetivos e métodos do outro. Mas, curiosamente, foi num dia descompromissado e cotidiano, dia comum da sala de aula de 3ª série, à época, que fiz minha primeira experiência lúdica com as letras, apesar de já saber ler sem dificuldades a bastante tempo.

Minha professora propôs uma leitura do poema “As borboletas” de Vinícius de Moraes, e em sua recitação, que ela mesma fazia com maestria pedagógica ante nossa expectação, percebi a brincadeira sonora que as palavras faziam entre si chamadas rimas. Descobri, daquela forma, coincidentemente pela voz da professora, que as palavras brincam e convidam a gente a brincar com elas. Hoje acredito que foi ali, de forma simples e casual, na escola mesmo, que fui apresentada à poesia e não sabia que ela me seguiria por extenso caminho, vida à fora.

Comecei a gostar de palavras! Passei a deliciar-me com suas diferentes pronúncias, ficava feliz em descobrir novos vocábulos e o que eles queriam dizer. Rimas soltas que passei a fazer brincando de “palavrar” ensaiando meus próprios versos numa brincadeira gostosa de brincar sozinha. E, conseqüentemente, passei a me interessar mais pela leitura dos textos que me eram oferecidos, o que dilatou, sobremaneira, meu desenvolvimento lingüístico e acadêmico como um todo, porque eu sempre ia bem nos estudos.

Desse gosto encontrado, passei a participar intensamente de momentos comemorativos escolares nos quais sempre fazia questão de recitar poemas e encenar pequenas peças teatrais temáticas sempre com muito interesse e vontade de fazer “com verdade” aquilo que me disponibilizavam fazer. Lembro que sentia enorme alegria em exibir meus dotes ao decorar e declamar poemas extensos e com palavras rebuscadas para minha idade para a escola inteira, diante das professoras, da diretora e da minha família que sempre se fazia representar nesses momentos. De certa forma eu sinto que isso me promovia, me destacava no grupo de crianças como uma forma de compensar a vida dura que nossa família levava para nos manter na escola particular, sobretudo. Eu que era a mais velha de outros três irmãos menores.

Aos 14 anos de idade o desejo da cena era largo e generoso em mim. Não havia como não avançar: ingressei num curso de teatro realizado por uma fundação cultural da minha Cidade e de lá pra cá minha formação tem se dado pelo viés da literatura e das artes cênicas, especialmente o teatro, sempre numa relação de dialogicidade estreita.

A vontade de conhecer mais e militar pela valorização do poema e da poesia nas práticas escolares do I segmento do Ensino Fundamental, em face das descobertas dos códigos lingüísticos no emaranhado do universo letrado que fiz me levaram a propor como Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) da graduação de Licenciatura Plena em Pedagogia no ano de 2003, uma pesquisa intitulada A POÉTICA COMO RECURSO PARA O DESENVOLVIMENTO DA LINGUAGEM ORAL E ESCRITA NAS SÉRIES INICIAIS DO ENSINO FUNDAMENTA, pela UFPA, a qual tive o privilégio de transformar posteriormente, em oficinas e cursos, dividindo essa experiência e outras mais que fui adquirindo, com crianças e educadores em diferentes momentos e espaços de formação específica, tanto de crianças da região campesina do estado na qual fui formadora por certo período, passando por crianças de áreas periféricas e ribeirinhas da nossa capital, como com as crianças bem favorecidas economicamente como as quais tenho hoje o privilégio de “contracenar” em minha experiência didático-pedagógica em âmbito marista na cidade de Belém/PA.

Em trabalhos teatrais que desenvolvo em minha cidade, sempre procuro aliar e integrar a literatura como excelente indutor criativo que possibilita originar um corpo crítico- reflexivo em sua potencialidade sensorial (sonora, tátil, motora, visual) na relação com o contexto ficcional no qual está inserido, com a rica heterogeneidade de interação/ conexão com a realidade que o circunda, objetivando uma oralidade clara, objetiva, analítica e expressiva, bem como uma imaginação criadora capaz de romper com a morbidade de um pensamento que deseja manter a escola longe da vida presente e distante do prazer e da alegria de aprender por meio da ludicidade.

Nessa perspectiva, a criança é entendida como protagonista de seu aprender SENDO e assume contornos nítidos de sujeito dialógico que é, transformador naquilo que lhe é possível intervir com naturalidade e espontaneidade compatíveis com sua a faixa etária, numa relação grupal na qual desenvolve sua autonomia de forma sadia e gradativa, o que agrega ao seu desenvolvimento intelectual, psicossocial e afetivo elementos importantes à sua inserção no mundo dos sentidos e das relações de forma segura e equilibrada.

Atualmente, no curso da minha experiência como arte-educadora paroara e como educadora de Sentido Religioso/ Ensino Religioso no Colégio Marista Nossa Senhora de Nazaré em Belém/ PA, tenho procurado inserir em nossa metodologia de trabalho a literatura como suporte de ensino para uma aprendizagem significativa, agregando valor à contação de histórias, ao reconto, à produção ilustrativa, aos jogos orais e escritos, à interação com as diferentes linguagens artísticas (artes visuais, teatro, dança, música) no campo de conhecimento no qual atuo. Um meio pelo qual as crianças possam compreender, aos poucos, o conhecimento como algo bom, agradável, divertido, útil à vida e à felicidade que buscamos viver, e que o usufruto dessas estratégias ajudam a compreender a vida em sociedade em sua totalidade, como parte e como todo, longe das fragmentações conteudistas e conceituais que tanto as distanciaram de uma relação de afeto com o espaçotempo educativo escolar.

Ao ingressar neste curso sobre Infâncias: Leitura e Literatura Infantil- Fantasias, Narrativas e Histórias, objetivo fortalecer esse olhar carinhoso sobre as diferentes crianças, suas experiências e aspirações particulares, alargar meus conhecimentos acerca desta vivência pessoal em interface com as demais experiências dos colegas de turma, sob a orientação de uma tutoria que, por certo, nos possibilitará um intercâmbio valioso e enriquecedor que aproximará as distancias geográficas e conceituais, o que por certo se refletirá numa prática mais acertada quanto aos interesses e necessidades peculiares de educadores comprometidos com as infâncias atendidas em nossas unidades pedagógicas.

Penso que este pode ser um retorno ao quintal, aos amigos e brincadeiras da meninice, espaço fértil onde possamos “brincar” de ser outra coisa, recuperando o que há de mais saboroso em nossas memórias: o pequeno/ pequena que fomos e guardamos em nós. Um lugar de sonho compartilhado em trocas divididas, pequenos versos de vidas-poemas aprendendo a aprender, refletindo o prazer, descobrindo, inventando e refazendo o viver.

OBS# Texto produzido como proposta de atividade avaliativa parcial do Curso em Infâncias: Leitura e Literatura Infantil- Fantasias, Narrativas e Histórias, promovido pelo NEAD Marista, sob a tutoria da Profa. Msc. Mariana Vasconcelos.


[1] Pedagoga e atriz pela Universidade Federal do Pará. Pós-graduanda em Estudos Contemporâneos do Corpo pelo Instituto de Ciências da Arte da UFPA. Atriz integrante do Grupo de Teatro Universitário - GTU da UFPA e CIA AVUADOS de Teatro. Cursista de EAD no Curso de Infâncias- Leitura e Literatura Infantil: Fantasias Narrativas e Histórias. Docente de Sentido religioso/ Ensino Religioso na Educação Infantil e Ensino Fundamental do Colégio Marista Nossa Senhora de Nazaré em Belém/ PA.

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