Rosilene DA CONCEIÇÃO Cordeiro... Ode aos Imperadores e aos 7 candeeiros em seus cavaleiros!
(Por Rosilene Cordeiro. Atuante-performer, realizadora de cena entre a urb e os campos da Grande Florest. Texto produzindo como indutor criativo para o tratamento artístico "O Corpo Trai", no âmbito do Projeto Sincrético - Belém do Pará, 2013)
[...] Conceição meu sobrenome de meio,
da casa de minha avó materna que pariu e criou filhos sem pai. Teve oito, criou
três e viuvou de vez depois do segundo casamento que julga na fala rançosa
acordo só de papel. Portanto, meu SOBREnome de meio é ventre, conto, cata
vento.
Trazidas por essa brisa diminuta e alongada pelo tempo vem essas imagens fantasmagóricas que me devoram, me corroem, me comem como
fruta tirada agorinha da árvore que um dia me proibi.
A primeira delas do meu avô
materno que tinha três nomes e nenhum sobreNOME, como atentou o Mailson: MANOEL
APOLINÁRIO VITOR, que eu conheci ainda criança, envolvida numa sainha rodada no
corpinho gordinho, quando mamãe me levava à sua casa e me depositava confiante-
ela e eu - em seu colo gigantesco e pesado como o de um digno Ogum. Acho que
foi o primeiro gigante que conheci rosto a rosto. Vejo-me ali, sorridente,
recebendo dele beijos que encharcavam a minha cara pelo rompante dos grandes
lábios que a tez negra de um belo perigoso plantou naquela face vibrante e assustadoramente
inesquecível. Acho que ele também me
chamava de Rosa, mas dessa memória não trago tamanha certeza. Que belezura de
nego, que fascínio intocável eu tinha por ele. Que importância tinha meu nome?!
Vovô Apolinário, potiguar, de
raiz familiar que infelizmente não conheci viveu, acredito, até os 70 anos,
morreu religioso, freqüentava a Igreja Assembléia de Deus e não perdia os
cultos dominicais onde ouvia uma menina cantar como rouxinol, hoje, minha
vizinha e amiga que relata que o amava reforçando o mito do homem vigoroso e encantador
que era.
Mamãe no decurso da vida demonstrou
tê-lo perdoado a ausência tirada dela pelo gênio absolutista da vovó imperatriz,
essa sim, que nunca dirigiu a ele a palavra depois do fim do relacionamento do
casal que deixou por saldo apenas uma cria, aquela CONCEIÇÃO que me gerou.
[...]
Passemos ao grande homem da minha
vida inteira, então: DINIZ CORDEIRO DO AMARAL!
Estatura mediana, franzino,
barbicha, de tez branca um pouco escurecida pelo sol da maré, de maçãs coradas
em permanente refinamento lateralizando aquele nariz levemente arredondando na
ponta, herança da ascendência indígena. Soube que vovô era filho de um casal
indígena que migrou para São Miguel do Guamá pelo rio, quando seu pai, meu
bisavô, resolveu deixar a tribo pra descobrir o que havia ‘depois da floresta’.
Minha prima de segundo grau relatou-me, quase segredando, que ele veio
primeiro, como bom cavaleiro, para depois ir buscar a bisa, porque dela não se separou
o que ocorreu apenas por morte.
Em vovô Diniz o traço mais
marcante era a voz. Ariano mor ao
extremo do tolerável conduzia a família de oito filhos pelo braço, com aquele
timbre de voz gritada que deixava a vizinhança perplexa quando o ouvia sempre
intrigada se a tradução do tom altivo era devido à briga ou conversação
doméstica.
“Seu Diniz” era o patrono do
Retiro São João, um recanto de terreno sendo ele um dos primeiros moradores da
comunidade do Tapanã; isso porque antes de qualquer outro amor, o de vovó
inclusive, era homem que gostava de terra e árvores sendo um devoto de hora
marcada por vocação. Rezava, todos os dias, religiosamente às 06h 12h 18h 00h
como num ritual. Cultuava São Francisco
de Assis, Nossa Senhora das Graças, Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, a vida
marítima- era cozinheiro fluvial de profissão- e honrava a Família, o maior bem que
constituiu ao longo dos 85 anos, dos quais 55 viveu sob o cuidado generoso e
pacificador da minha avó paterna. Que silêncio audacioso e manipulador aquele
que mantinha o vovô totalmente submisso à sua vontade, isso quando todos
julgavam justamente o oposto. Vovó sim era outra forma de dominação feminina,
sem que ele ao menos desconfiasse disso. (risos)
DINIZ era homem que adorava a
casa cheia! Por isso adquiriu uma propriedade abundante de árvores frutíferas
com terra almofada de folhas frescas e secas de várias espécies. Amava quando
os netos, filhos, genros e noras se derramavam como cachoeira em volta dele,
recebendo-nos com comida farta, risos, piadas, tudo em torno da mesa onde ele
reinava intacto, sem fim. Quando cansávamos das peraltices do quintal infinito
ganhávamos a mesa, entre frutas e verduras, assados e cozidos, conduzidos por Ele
que queria ver-nos felizes, naquele exato momento.
Pra esse avô eu era A ROSA! Todos
os mimos de primeira neta num arsenal de 26 primos queridos e irrequietos de
alegria à minha chegada. Todos diziam- às escondidas, lógico!- que ele se jogava à cama toda vez que tinha
notícia que eu estava chegando, só para gozar da minha companhia dedicada em
ouvir-lhe os murmúrios no quarto que cheirava a sebo de holanda e
alfazema...cheiros insubstituíveis aqueles, meu Deus! O quarto do meu avô tinha
cheiro, luz e cor.
Seu Diniz a-do-ra-va comunicar-me
a vida, os infortúnios da saúde debilitada, as desobediências da vovó e como os
filhos deixavam de visitá-lo com a regularidade que gostaria.
“- Eu tô morrendo, Rosa! Acho que essa é a
última vez que estás vendo o teu avô!”-dizia ele tristonho sempre com ares de despedida
derradeira. E a isso ouvia de mim em voz
aguda e determinante: “Não vovô, mas quando, você ainda vai enterrar muita
gente.” Sorrindo pra ele daquele jeito que o acalmava na asma crônica de
ex-fumante hipocondríaco que se tornara. Na verdade eu sempre achei que ele repetia a
mesma sentença para ouvir justamente a minha mesma resposta... Vovô parecia saber já naquela época que alguma
coisa que havia em mim sabia muito mais da morte que nós dois juntos. Ficávamos
juntos em horas sem fim...
Foi com ele que fui aprendendo a me
preparar pra minha primeira grande perda na vida: a dele mesmo. O velhinho me
tratava como uma dama terna. Havia tanta dignidade naquele nobre gesto, quanto
nobreza naquele homem simples e dominador pelo atrativo!
Mas tanto não é para tanto, e
vovô se foi mesmo assim, deixando um buraco aberto e papai assentado na cadeira
de cabeceira. Foi-se magro, de cabelos brancos deixando um rastro de impressão de
que queria ficar mais um pouco até nos ver crescidos e seguros...deixando essa
sensação de que está tão vivo como este agora, como a respiração bem aqui.
Na ausência do vovô restou-me
refestelar com papai, meu terceiro herói.
Do meu pai RAIMUNDO VIEIRA DE
MORAES CORDEIRO, capricorniano, valente e autoritário, todo o resto herdado, do
fim a esse recomeço. Não foi nada fácil a convivência amplamente tumultuada por
minhas rebeldias, desejos de fugas de casa, intermináveis discussões. Levamos a
família várias vezes ao limite! Mas nem sempre foi assim...
Tive com ele uma infância e um
início de adolescência totalmente
coberta afetivamente pela presença de homem-pai viajante alternando-se entre
viagens que nos deixavam melancólicos contando o retorno ‘na folhinha’ e
aqueles poucos dias que eram de felicidade sem conta em sua companhia. Dias e
dias dormíamos na mesma cama que virava ‘a camona’, com brincadeiras de ‘o que
é isso, pai?!’, dias e noites entre gargalhadas barulhentas na barriga naqueles
encontros mínimos mas sem fim. Qualquer
coisa que viesse do papai era festa, qualquer conversa mais séria valia como
uma surra, porque ele sabia como plantar cada palavra no seu devido lugar
aclamando nossa consciência do ato praticado e o arrependimento copioso que nos
tomava de emoção. Quase sempre as conversas com papai terminavam em choro.
Hoje eu já não recordo quando
deixou de ser assim, do quando fomos nos
distanciando e resumindo nossa relação a um pedido de benção respeitosa,
cordial e sem a esperada carência de regularidade na relação pai-filha.
CONCEIÇÃO é desse modo, a parte
que traduz a minha mulher [a] guardada. A parte que sempre foi negada em
detrimento da força desses homens que me fizeram Joana D’Arc de mim mesma, que me invadiram a vida inteira e me negaram o
direito de cultivar a ROSA que desabrochou na ilha, que voltou para casa
jardineira, arrumadeira, afável e missionária. Mas não há como negar, de todo
modo, que DA CONCEIÇÃO foram esses homens que hoje voltam revisitados, que me
[e]levam ao céu criativo!
Esses átrios que antes eram três
espelhados nesse 7 que me conduziram por
longo caminho de decisões, escolhas, ultrajes, carências e inibições. Esses
imperadores que sempre estiveram me condicionando, de alguma forma como algo que
eu mesma criei e permiti crescer; tardando a pisada na cabeça da serpente que espreitou
‘essa mulher’ durante toda estrada a pé.
Agora não há mais o que esconder.
Os olhos são meus maiores acusadores.
[...]
Penso que passei a vida inteira
em busca desse homem que fosse o perfil em 3X4 da personalidade dos meus avôs e
do meu pai, e na falta dele (que provavelmente não existe!) eu me fiz uma figura
imperadora emoldurada por uma espécie de obsessão pessoal, meu caro arcanjo!-
Eis a verdade acerca da tua distante, perturbadora e recorrente pergunta.
No entanto, percebamos a surpresa
da vida, senhoras e senhores!
No tempo certo a imperatriz
reclamou seu próprio trono, requereu para si os louros do império por direito. Unta-se,
para isso, com as estrelas desse tempo
que traz nas mãos e delas constrói a coroa que há de revestir-lhe a cabeça como
bem-vinda majestade celeste.
Ao lado, vê-se uma garota
apressada com fitas coloridas trazidas à deusa pelas pequenas e inexperientes mãos:
“São sete cores, seres divinos. Sete esplendores, celestes mimos!”.
Uma única irradiação energética a
pintar a alvorada que sucumbe à estrela da noite-dia que surge.
Abre-se o céu! Um manto de branco
rendado e transparente recobre o
infinito com sete estrelas reluzentes. Um facho de luz imperial partido em
cores (7) divide o corpo da serpente alada que se insinua nua no céu da aurora
róseo-lilás. A cauda aponta para a Terra que
se abre num botão dentro do qual a filha-MULHER-mãe ornamenta-se com tecidos vastos dos eguns que a
antecederam, tocando-os apenas com a visão.
Um olho penetra o vazio e o
preenchido do alto. Enxerga a cobra laçada entre as nuvens sem nenhum nó
visível entre as partes, como um papel de parede colado na retina e pela mesma
lente, e com igual intensidade é enxergado. Terra e céu coabitam, acasalam e
adormecem nesse olhar, noutro sonho inimaginável, contudo possível, a dois, a
muitos. Gestam juntos e mas é a mulher que pari em águas turvas de de igarapé
uma humanidade repleta de transcendência apreciada pela chuva que a batiza ali
mesmo.
Há festa na terra... e no céu!
Apolinário e Diniz vem a porta saber do
que se trata. Raimundo desconfia, mas ainda não atentou para som que anuncia
sua chegada.
Acende-se na imensidão a chama animada pelos sete
candeeiros na qual CONCEIÇÃO se confirma a mulher de todos os tempos, a que
rasga o mundo que tem sob os pés, cravando-lhe safiras de poesia saindo da
profundeza da Terra e ganhando a vastidão do Céu.
Coroa a si mesma a representante
do 8 em mistério de líquido vital, água em gotas de evaporação insondável que
desce o firmamento em cada fim de tarde, infinitamente dama, ROSA, deusa, celeste, líquida
enfim, nesse gozo traduzido em mim. Vazando a terra e retornando num sempre.
Salve Maria, Maura Cançado de
Deus, homens DA minha vida CONCEIÇÃO, Salve!
“Salve os degredados filhos de
Eva” gemendo e chorando nesse cordeiro que se entrega ao fogo e se quer
devorado em chamas numa oferenda digna, silente e desejosa para que se cumpra
nele a tua vontade, nova Eva, Ewá:
“Fazei TUDO o que Ele vos
disser!”
Que a fumaça terrena do sacrifício
siga numa viagem luminosa ao céu abismal para beijar a face dos avôs,
guardando-os no devido templo da lembrança, permitindo-me retornar à minha casa,
à nova carne, como esposa eleita e irrepreensível ao encontro do seu anunciado
e novo Imperador.
O coração... é esse CORPO que me
TRAI.
PS: obrigada por estarem aqui
nessa hora tão difícil, porém feliz. [...]
(Aos atuantes-parceiros Mateus Moura, Maurício Franco, Mailson Soares, Wallace Pantoja, Rafael Couto, Diego Vattos)
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