"Fala que Eu me escuto". Crítica do espetáculo “Ouça, meu filho!"em apresentação na UNIPOP.
Por Silvia Luz
( Mestre em Artes. Diretora, atuante, professora de Teatro em Belém-PA)
( Mestre em Artes. Diretora, atuante, professora de Teatro em Belém-PA)
Foi
num contexto intimista que a Companhia Avuados de Teatro apresentou
‘Ouça meu filho’, uma dramaturgia experimental desenvolvida a partir de
histórias cotidianas compartilhadas pelos espectadores. Enquanto
relata uma história, o espectador alimenta a construção imaginária
edificada na mente de uma atuante que em seguida operacionaliza as
ações, dando vida à narrativa.
No
final, a atuante propôs uma conversa informal com os espectadores sobre
a vivência coletiva do trabalho desenvolvido. “Cada dia de apresentação
é sempre compreendido como espetáculo único, eventual, novo, como novas
são as histórias trazidas pelos espectadores a cada dia”, informa a
companhia teatral.
Um
ambiente com pouca iluminação, num canto desse espaço havia uma pequena
mesa com imagens de santos, velas acesas, um copo com água e uma
cadeira ao lado. Na parede a tela de um retroprojetor e no chão,
especificamente, num dos cantos alguns objetos. O espectador estava
sentado bem próximo da cena, em cadeiras, arquibancadas e no chão mesmo.
Durante a encenação o retroprojetor era usado para exibir os vídeos da
pesquisa.
A
atuante senta na cadeira, toma um pouco d’água e começa a falar. Diz
que não consegue abrir o coração, quando o assunto é mais íntimo, a
partir daí ela relata vários acontecimentos e de repente, fica no meio
do espaço cênico e começa a dizer um poema para a mãe dela, tudo meio
corrido, ao piscar dos nossos olhos começa a chorar; corre para a
lateral e conversa com uma professora imaginável dizendo que a mãe dela
nunca fora na escola nos dias de festas e que ela sempre ensaiava um
poema para dizer a mãe, mas não conseguia, pois a emoção a dominava.
Neste momento, volta ao centro segurando à mão da professora e diz o
poema inteiro sem derramar uma lágrima.
Senhoras
e senhores já começou o espetáculo? É a Rosilene ou o personagem?
Fiquei confusa, mas o interessante é que eu sabia exatamente quando era a
Rosilene e quando era o personagem. Nesse momento a arte saiu da caixa preta e foi trazida para a vida. Talvez não exista um nome para esse fazer, mas em alguns momentos lembrou-me os happenings que
para o compositor John Cage são “eventos teatrais espontâneos sem
trama” e para o poeta e artista plástico Jean Jacques Lebel “é arte
plástica, mas sua natureza, não é exclusivamente pictórica, é também
cinematográfica, poética, teatral, alucinatória, social-dramática,
musical, política, erótica e psicoquímica. Não se dirige unicamente aos
olhos do observador, mas a todos os seus sentidos”.
Envolveu
além do aspecto de imprevisibilidade, envolveu a participação direta ou
indireta dos espectadores presentes. As improvisações nos conduziam as
cenas ritmadas pelas ideias do acaso e espontaneidade da atuante em
contextos diversos. Acredito ser teatro porque acontece no tempo real,
mas recusa algumas convenções artísticas, tipo um texto pronto para ser
decorado ou um palco para ser encenado, é aqui, ali ou em qualquer
lugar. A apresentação beirou as fronteiras entre arte e vida. Rechaçou
as críticas e o fazer teatral somente dentro da caixa preta.
Ouça
meu filho! O que é arte? Ela nos diz em cena, a relação da vida dela
com a arte, é isso!!! Rompeu barreiras entre a arte e não arte. Seria
experimentar a arte como sua razão de ser? Sua razão de ser em cena é o
seu dizer-teatral que nos devora inteiro e devolve-nos desvelado de si
mesmos.
Vivi
este momento como um buscar de mistérios, uma dádiva ofertada. O café
que pensei estar na xícara em cima da mesa, foi uma oferenda, mas ele
nunca existiu na cena, porém ela me presenteou com este café, senti seu
aroma e quentura. Ei, não havia café algum. Seria ela a Matinta Pereira?
Ela vem amanhã buscar o café na minha porta? Então vou ter que
retribuir o café? Esse café na verdade é a magia do dizer-teatral que a
atuante nos dá, mas não nos dá de graça. Tem um o forte interesse de
receber o acalanto.
Por
que associei à Matinta Pereira? Vi e senti o processo vivido como uma
dádiva. Reza a lenda, que devemos retribuir o presente recebido, caso
contrário podemos ser amaldiçoados, pois o que a atuante nos deu segundo
as variadas lendas da Matinta, possui um vínculo de alma, é algo
espiritual. Por isso a obrigação de receber é essencial para o conceito
de dádiva de Marcel Mauss (2003), não aceitar é recusar aquele que
ofertou, negando a comunhão consigo e com outros, pois é essa comunhão é
que nos une. É tomar e dar o café sem ele está ali.
Matinta Perera! Fióóóó! Fióóóó!
Prof.ª Msc. Silvia Luz
02.11.2014
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