“Ouça meu filho- Memorial afetivo de histórias contadas à beira do rio...” - Relatos de viagem
Ilha
de Cotijuba, 28 de novembro de 2013.
Mailson
Soares- ator, diretor, cenógrafo e dramaturgo.
“Andorinha
que voa no céu andorinha, leva criança pro céu andorinha
Andorinha
que voa no céu andorinha, leva criança pro céu andorinha
Voa,
voa, voa andorinha leva criança pro céu andorinha
Voa,
voa, voa andorinha leva criança pro céu”
Atravesso,
tomo o bote e atravesso. Atrasado só consigo apanhar o barco porque
alguém quis embarcar uma máquina de lavar. Bendita máquina de
lavar. Agradeço a ela ou ao portador? O barco está cheio e continua
entrando gente, faz calor. “Bocas pretas” me acompanham, acabamos
a pouco de tomar açaí. Segue o barco, cruza a bahia. Gente
atravessando. Fotografo a paisagem, a passagem, a maré vazante, que
lá meio é cheia. Barco cheio, gente de travessia, visitantes,
viajantes, povo das ilhas. Quando chegará o momento em que eles
cruzarão as águas e virão fotografar as gentes da cidade? Chega
de nós os olharmos como se fossem eles a única paisagem. Não somos
os únicos a olhar, eles nos vem tanto quanto os vemos. Talvez,
sejamos os vigias de um único mirante, apenas não nos demos conta
disso. Mas deixe o tempo correr, ele se encarregará de unir nossas
cidadelas.
Chegamos,
chego. O barco encosta. Avisto a ilha da própria ilha. Seus muros
antigos e sua gente. Tomo a charrete. Parto para a escola. Do barco
havia avistado a torre da igreja, agora passo diante dela; é de São
Francisco. De Assis. Passo com a charrete sacolejando em frente da
escola, até então, pensava que ia me apresentar ali. Mas é um
pouquinho mais adiante, quase do lado. Desembarcamos as coisas, todo
o material. O local, normalmente é um local de festa. Um espaço
grande todo murado. Dentro um prédio coberto, mas sem paredes. Um
quintal que segue. Mas como vai ser? Pensamos em um evento
intimista... Pra poucas pessoas aconchegadas em um canto, num
recôncavo ou num pequeno quadrado acolhedor.
Começamos
a nos organizar e arrumar o espaço. Vem o responsável da escola.
Organizo as cadeiras em círculo em volta da mesa, um círculo
pequeno. Ele diz que vão vir várias turmas do colégio. Que o
número de cadeiras não é suficiente. Que virão muitas crianças.
Eu me inquieto. A notícia de que virão muitas pessoas me incomoda.
A qualidade do trabalho pode ser prejudicada?!Troveja. Respiro fundo.
Continuo arrumando, limpando e dispondo cadeiras. Respiro fundo mais
uma vez, silencio. Tudo é um aprendizado. Aborreço-me por estar
praticamente só arrumando o espaço. Não me recuso a trabalhar
desde que me seja informado de antimão o que deverei fazer. Pensava
eu que esta parte de infraestrutura a escola se responsabilizaria, e
que organizaria o espaço físico, enfim. Penso: vou me concentrar
no trabalho. O que me aborrece é o que vai também me acalmar. Na
mesma dose. O trabalho sempre me salva. Ajudam-me a arrumar as
cadeiras. Perceberam. Isso me acalma. Mas não era esse o espaço que
eu havia pensado, nem era esse o número de pessoas, nem mesmo a
faixa etária... Muito bem, estou aqui e vou fazer o meu trabalho.
Vou fazer aquilo a que me propus. Continua trovejando. Parece que vai
chover. E o local é todo aberto...
Quem
é do som arruma o som. Todo o equipamento para captação sonora do
espetáculo está preparado. Nesse momento somos uma equipe
silenciosa. Repensamos alguns posicionamentos de objetos. Muitas
cadeiras. Mesa arrumada. Biscoitos, chá, café. A atriz está no seu
“movimento”. Ela começa a impregnar- se de alguma forma dessa
aura mágica que envolve a cena. E o meu momento? Eu não tive.
Compreendo. É isso. Desde que saí de casa já é. E o idealizado só
existe no mundo das ideias, nada mais. O real se dá de outra forma,
e eu estou aqui.
Música
tocando. Tudo pronto. Compreendo e aceito que esta é a minha cena.
Toda ela. Com as muitas cadeiras, o local aberto, eu arrumando.
Preparando papéis, caneta.
As
crianças começam a chegar, uma olha e volta, vem outra. Elas
chegam. São muitas. A história do ingresso não vai funcionar. Não
tem para todos. Nem como escrever algo para cada um. No começo estão
tímidos. Chegam mais, e agora crianças e alguns adolescentes. Os
professores... Finalmente vamos começar a contar. Ou será que já
começamos?...
Ofereço
biscoito, isso faz parte, está no roteiro. Os pequenos parecem
tímidos, mas sei que eles não o são, alguns aceitam, outros
recusam. Digo para que eles peguem na mesa. Um ou outro vem. Imagino:
vou levar a eles e servir um a um para não haver confusão. Ah, quer
saber que seja! E assim é. Eles avançam e num segundo adeus
biscoitos. As professoras interferem. Eu sorrio. Alguns com as bocas
cheias. Outros não. Agora dividam, eu digo. E partilho com alguns os
biscoitos que restaram.
Ela
levanta- se, não sei que história vai contar. Os observa. Plateia
formada. A atriz sabe o que fazer. E ganha o público sorrindo,
conversando com eles. Ela é professora, também. E é mãe. E é
mulher. E é contadora. Logo começa a contar sua história. E as
crianças se encantam. Riem, falam, cochicham. Participam. Ela
pergunta, eles respondem. Interferem. A história é deles. Ela diz
que quando criança brincava de ser a “Mulher Maravilha”. Tinha
que ser essa a história. Eu sabia! Ela já havia me contado. Em
alguns minutos todo mundo participa da história.
Agora
ela quer que eu conte as minhas. Mas eu já me esvaziei. Já contei
todas na travessia do barco. Não tenho mais vontade de contar. Tento
catar alguma na memória, mas não vem. Quero é ouvir. Porque sou
moleque, que nem eles. E eles contam. Quando provocado eles contam. E
aí aparece o relato: do menino brigão; do conquistador; daquela
garotinha que faz bagunça na aula, e depois de ser chamada atenção,
pede desculpas ao professor.
E
tudo isso vira cena. Transformamos as histórias que ouvimos em cenas
curtas. E eu dirijo, determino todas elas. E as crianças se encantam
com suas próprias histórias. Riem. Enxergam-se em cena. Os olhinhos
brilham. E eu sou moleque, sou professor, sou artista.
E
é isso que eu gosto de ser. Gosto de ser moleque. Gosto de ser
artista. Gosto de ser professor. E me pergunto: não sei se gosto
mais de ouvir ou de contar?
As
histórias cessam. Os aplausos fervem. Os sorrisos e olhinhos ainda
vivos nos seguem, nos acompanham. Agradecemos. Os professores dos
alunos plateia também agradecem. Apresentamo-nos: dizemos nossos
nomes. Sorteamos um Cd com a trilha sonora do espetáculo para quem
souber o nome da peça, alguém pula e diz: “ouça meu filho!”. É
um menino mais velho, ele ganha. Despedimos-nos. E elas começam a se
retirar... Crianças... Benditas crianças...
Começamos
a guardar as coisas. Guardar cadeiras, equipamentos, figurinos,
objetos de vida e cena. Existe separação?... Agora para mim, parece
que não (Começo a entender a Performance!).
Tudo
guardado, recolhido, agasalhado. Vamos partir. Roupas na sacola.
Histórias recolhidas para o lugar de onde deverão sair quando forem
contadas, ou não. Seguimos como fazedores de sonhos. Tecendo ilusões
com os fios da memória. Sorrisos nos seguem, mãos de adeus nos
acenam, agradecimentos e parabenizações nos acompanham. Nada mais
há.
Eu
sigo muito feliz.
Que
boa criança que sou. Que fui... Que continuarei sendo
...........................................................................................................................
“Ouça
meu filho- Memorial afetivo de histórias contadas à beira do
rio...”
Vila
de Passagem Grande, Salvaterra- Marajó, 19 de julho de 2014.
Mailson
Soares – ator e dramaturgo
“Quem
conta um conto aumenta um ponto”
(Provérbio
popular)
No
dia 18 de julho de 2014 a Cia Avuados de Teatro aportou pela manhã
em Camará, município de Salvaterra, na Ilha de Marajó. Com o
intuito de apresentar a peça teatral “Ouça meu filho”.
Previamente organizados já tínhamos feito a produção do
espetáculo há alguns dias, via um dos integrantes que viajara ao
município com essa incumbência.
Dessa
forma, já havia sido escolhido o local para a apresentação e feita
todas as articulações e divulgações para a realização do mesmo.
Na “rádio cipó” da cidade podia-se ouvir a notícia de tal
evento, que ocorreria na vila de Passagem Grande, na escola municipal
Marilda Nunes. A diretora da mencionada instituição de ensino, a
senhora Telma Bastos, recepcionara muito bem o ator que incumbiu- se
da produção do espetáculo, e tudo já estava acertado.
Na
tarde quente de verão, do sábado de 19 de julho de 2014 deu-se a
tão esperada apresentação. Os atores e equipe técnica chegaram
mais cedo à escola onde ocorreria o evento para organizar o espaço.
Sala e cadeiras limpas, microfones e gravadores instalados para
captação de áudio, mesa arrumada com: bolo, biscoitos, chás,
café; atores a postos e público chegando, daqui a pouco iriam
começar...
E
começou, a noite caiu e junto com ela uma forte chuva. Aconchegados
naquela pequena sala daquele grupo escolar um grande número de
crianças, alguns jovens e alguns adultos compartilhavam sorrisos,
histórias e lanche gostoso.
Os
atores começaram contando suas histórias, brincando com o público,
botando música pra tocar e rindo bastante. Daqui a pouco vieram as
histórias dos espectadores: Dona Ducarmo contou a da Matinta
Pereira, com seu já conhecido jargão “vem buscar tabaco de
manhã”; as crianças falaram de assombrações, visagens e
monstros; e Dona Izumina, uma divertida senhora narrou a longa
história de um menino e seu tambor, história grande como costumamos
dizer, com um delicioso jargão “Deus é grande!”; e ainda a
comunidade brindou-nos cantando o trecho de uma canção do “Pássaro
Rouxinol”, Grupo dramático de Teatro de pássaros que fora
tradicional naquela comunidade... Houve ali um gosto de saudade...
Muito
bem, ouvidas as histórias cabia agora aos atores transformá-las em
cena. E o riso foi grande e o contentamento tremendo quando nossos
espectadores viram suas histórias ganharem vida por meio dos corpos
e vozes dos intérpretes.
Final
de sessão, agradecimentos, aplausos, risos, congratulações... Com
o fim das histórias, cessara também a chuva. O público teimava em
não dispersar- se, comunidade pequena, uns conhecidos dos outros e
até mesmo parentes, se dava agora uma feliz confraternização,
conversa boa que foi findando, com cada morador voltando para sua
casa.
Desmontar
equipamento, guardar figurinos e objetos de cena, colocar tudo na
mala do carro. Feita a desprodução, restava a nós, atores e equipe
técnica agora as lembranças daquele lugar de saudades, de um Marajó
que se faz encantado em sua simpleza de gente guerreira e contadora
de histórias.
Cia
Avuados de Teatro
Integrantes Cia Avuados de Teatro
Rosilene
Cordeiro – Atriz
e diretora teatral.
Mailson
Soares – Ator
e dramaturgo.
Lenardo
Oliveira – Captador e operador
de áudio.
Chimênia
Pinheiro – Fotógrafa.
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