DE LUGARES QUE JÁ FORAM - REFLEXOS DA AUSÊNCIA- Publicado em artes e ideias por Wallace Pantoja



A ordem do dia é conservar o patrimônio, para gerações futuras os destroços de nosso passado comum. Contra esta ditadura da visibilidade, a performer e atriz Rosilene Cordeiro, com fotografias e audio-filmagens de Denis Bezerra e Elma Totty, criam uma fenda temporal em corpo-presente na "Performance a São Marçal", realizada em Icoaraci, distrito industrial de Belém do Pará (Brasil). Per-formar o que não entra nas listas tombadoras locais ou globais; usando o báculo do santo, afronta nosso narcisismo ao presentificar o óbvio soterrado: temos lugar(es) próprio(s) e nossa posição repercute o que vemos, lembramos, somos e esquecemos.


Vivemos a valorização concretada da tradição histórica. Tombamentos, turistificação, conservação do passado comum. Um consumo da visibilidade plena e, por isso mesmo, fragmentária. Plena porque queremos captar o conjunto da paisagem com o olhar e sentir a "atmosfera" através dos séculos, congelar o momento em fotografia ou impressão mnemônica. Porém, o contexto vivo que continha e era contido pelo lugar não o é mais: um casarão tombado não é o casarão, é seu fragmento, mesmo que inteiro, um "lugar-que-foi".
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Nossa tara monumental e senso de materialidade repercute nas tentativas de politizar os patrimônios, heranças de nossas formações geohistóricas arruinadas. Uma gama de especialistas é mobilizada para decidir o que é e o que não é Passado; uma classificação altamente sofisticada é realizada para hierarquizá-los e contê-los: "é patrimônio natural aqui", "histórico ali", "material ou imaterial acolá"...
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O congelamento do tempo-imagem-conjunto garantiria uma consciência real da história para as gerações futuras e para os de fora - "máquinas fotográficas a postos, quero (me) mostrar na paisagem rococó!". O que não queremos enfrentar é que estes arremedos de tempos materiais são ausências, putrefação interrompida, o que foi morto, mesmo que queiramos constituir uma continuidade até o nosso presente egomaníaco. A memória coletiva passa a ser um terreno de negócio e de estratégias de visibilidade - o que entra para a história museológica carrega, inevitavelmente, seu outro interrogativo: o que não entra?
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Rosilene Cordeiro, performer e atriz, decidiu experimentar estes reflexos da ausência, lugares-que-não-são-mais. Porém, diferente da comunidade de especialistas do patrimônio, ela virou as costas para casarões coloniais de visibilidade chancelada e foi atrás dos lugares do sentimento, lugares de antes que foram engolidos pela dinâmica histórica e, agora, são ausências, reflexos só possíveis no corpo de quem os viveu em ato! Com fotografias de Denis Bezerra e Elma Totty, realizaram a performance "Cinco Pães, Dois Peixes e Um Milagre: Preparando o arraial de Marçal" (30 de Junho de 2015) em Icoaraci, distrito de indústrias fantasmagóricas de Belém do Pará.
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Visitando o antigo igarapé soterrado pelo asfalto. A taberna inexistente aonde comprava doces. A Praia do Cruzeiro que banhava na sua infância longínqua - agora proibitiva segundo os especialistas da assepsia. Ao capturar-se neste locais sem significado (esquinas, curvas, alagados, não são ruínas que mobilizem gregos e troianos) ela se posiciona exatamente na fenda espacial da memória, inscrita no corpo que (re)vive a intensidade do ser-lugar.
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Um espelho de duplo reflexo, o báculo mágico de São Marçal (?), a performance nos afronta com uma duplicidade imagética impossível - o que vemos não se vê de outra posição, afinal, deslocar-se pode ser, também, deslugarizar-se. Nossa posicionalidade é abertura e limite, o outro reflexo (detrás ou a frente, dependendo de onde inscrevo meu corpo) testemunha o irrepresentável do espaço, estilhaça nossas pretensões de contin-unidade, fratura nosso olhar narcisista que transforma histórias íntimas e pulsantes de lugaridade em petrificações; sublimadas em pedestais pelos defensores da Memória, do Patrimônio e da História.
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O "aqui tinha..." marca esta ausência curiosa de um passado não patrimonializado que preferimos esquecer, as estações da peregrinação deslizam ao largo dos monumentos eleitos/não eleitos. Presentificam no aconchego, um tipo de pertencimento não comunicável, a não ser por encontro no corpo-per-formado que evoca o calor da infância, o banho gostoso, aquele peixe degustado, risada na taberna do "tudo tem" e as fugas para viver! Não há moral ou pretensão de resposta, há um confronto do sentir-íntimo frente ao cinismo em torno da memória-patrimônio invasiva, que ecoa nas ruínas uma vontade de poder sobre o que cada um de nós deve ou não relembrar...
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Wallace Pantoja

Geobiógrafo dos lugares, os que existem e os que ainda não, morando no centro e vivendo nas bordas, sonhando com o entre..
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