Rosilene DA CONCEIÇÃO Cordeiro, seus imperadores e seus sete candeeiros em seus cavalos!


11 de agosto de 2013 às 11:32
Como é que o corpo esquece?

[...] Conceição meu sobrenome de meio, da casa de minha avó materna que pariu e criou filhos sem pai. Teve oito, criou três e viuvou de vez depois do segundo casamento que julga na fala rançosa acordo só de papel. Portanto, meu SOBREnome de meio é ventre, conto, cata vento inscrito na tarde. Trazidas por essa brisa diminuta e alongada pelo tempo vem essas imagens fantasmagóricas que me devoram, me corroem, me comem como fruta tirada agorinha da árvore que um dia me proibi.

A primeira delas do meu avô materno que tinha três nomes e nenhum sobreNOME, como bem disse um amigo: MANOEL APOLINÁRIO VITOR, que eu conheci ainda criança, envolvida numa sainha rodada e foridinha  no corpinho gordinho, quando mamãe me levava à sua casa e me depositava confiante- ela e eu - em seu colo gigantesco e pesado como o de um digno Ogum. Acho que foi o primeiro gigante que conheci rosto a rosto.

Vejo-me ali, sorridente, recebendo dele beijos que encharcavam a minha cara pelo rompante dos grandes lábios que a tez negra de um belo perigoso plantou naquela face vibrante e assustadoramente inesquecível. Acho que ele também me chamava de Rosa, mas dessa memória não trago tamanha certeza.
Que belezura de nego, que fascínio intocável eu tinha por ele.
Que importância teria meu nome num momento tão grande assim?!

Vovô Apolinário, potiguar, de raiz familiar que infelizmente ainda não conheci viveu, acredito, até os 70 anos, morreu religioso, frequentava a Igreja Assembléia de Deus e não perdia os cultos dominicais onde ouvia uma menina cantar como rouxinol, hoje, minha vizinha e amiga que relata que o amava muito, reforçando o mito do homem vigoroso e encantador que era.

Mamãe no decurso da vida demonstrou tê-lo perdoado a ausência tirada dela pelo gênio absolutista da vovó imperatriz, essa sim, que nunca dirigiu a ele a palavra depois do fim do relacionamento do casal que deixou por saldo apenas uma cria, aquela CONCEIÇÃO que me gerou.[...]Passemos ao grande homem da minha vida inteira, então:DINIZ CORDEIRO DO AMARAL!

Estatura mediana, franzino, barbicha, de tez branca um pouco escurecida pelo sol da maré, de maçãs coradas em permanente refinamento lateralizando aquele nariz levemente arredondando na ponta, herança da ascendência indígena. Soube que vovô era filho de um casal indígena que migrou para São Miguel do Guamá pelo rio, quando seu pai, meu bisavô, resolveu deixar a tribo pra descobrir o que havia ‘depois da floresta’. Minha prima de segundo grau relatou-me, quase segredando, que ele veio primeiro, como bom cavaleiro, para depois ir buscar a bisa, porque dela não se separou o que ocorreu apenas por morte.

Em vovô Diniz o traço mais marcante era a voz. Ariano mor ao extremo do tolerável conduzia a família de oito filhos pelo braço, com aquele timbre de voz gritada que deixava a vizinhança perplexa quando o ouvia sempre intrigada se a tradução do tom altivo era devido à briga ou conversação doméstica. “Seu Diniz” era o patrono do Retiro São João, um recanto de terreno sendo ele um dos primeiros moradores da comunidade do Tapanã; isso porque antes de qualquer outro amor, o de vovó inclusive, era homem que gostava de terra e árvores sendo um devoto de hora marcada por vocação. Rezava, todos os dias, religiosamente às 06h 12h 18h 00h como num ritual ininterrupto.

Cultuava São Francisco de Assis, Nossa Senhora das Graças, Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, a vida marítima- era cozinheiro fluvial de profissão- e honrava a Família, o maior bem que constituiu ao longo dos 85 anos, dos quais 55 viveu sob o cuidado generoso e pacificador da minha avó paterna. Que silêncio audacioso e manipulador aquele que mantinha o vovô totalmente submisso à sua vontade, isso quando todos julgavam justamente o oposto. Vovó sim era outra forma de dominação feminina, sem que ele ao menos desconfiasse disso. (risos)

DINIZ era homem que adorava a casa cheia! Por isso adquiriu uma propriedade abundante de árvores frutíferas com terra almofadada de folhas frescas e secas de várias espécies. Amava quando os netos, filhos, genros e noras se derramavam como cachoeira em volta dele, recebendo-nos com comida farta, risos, piadas, tudo em torno da mesa onde ele reinava intacto, sem fim. Quando cansávamos das peraltices do quintal infinito ganhávamos a mesa, entre frutas e verduras, assados e cozidos, conduzidos por Ele que queria ver-nos felizes, naquele exato momento. Aquele foi, por muito tempo, nosso paraíso particular.

Pra esse avô eu era A ROSA!

Todos os mimos de primeira neta num arsenal de 26 primos queridos e irrequietos de alegria à minha chegada no sítio de sua propriedade.
Todos diziam- às escondidas, lógico!- que ele se jogava à cama toda vez que tinha notícia que eu estava chegando, só para gozar da minha companhia dedicada em ouvir-lhe os murmúrios no quarto que cheirava a sebo de holanda e alfazema...cheiros insubstituíveis aqueles, meu Deus! O quarto do meu avô tinha cheiro, luz e cor.Seu Diniz a-do-ra-va comunicar-me a vida, os infortúnios da saúde debilitada, as desobediências da vovó e como os filhos deixavam de visitá-lo com a regularidade que gostaria.

“- Eu tô morrendo, Rosa! Acho que essa é a última vez que estás vendo o teu avô!”-dizia ele tristonho sempre com ares de despedida derradeira. E a isso ouvia de mim em voz aguda e imperial-determinante:
“Não vovô, mas quando, você ainda vai enterrar muita gente.” Sorrindo pra ele daquele jeito que o acalmava na asma crônica de ex-fumante hipocondríaco que se tornara.

Na verdade eu sempre achei que ele repetia a mesma sentença para ouvir justamente a minha mesma resposta...
Vovô parecia saber já naquela época que alguma coisa que havia em mim sabia muito mais da morte que nós dois juntos.
Ficávamos juntos em horas em conversas breves sem fim... foi com ele que fui aprendendo a me preparar pra primeira grande perda que teria na vida: a dele mesmo.
O velhinho rabugento me tratava como uma dama terna e delicada. Havia tanta dignidade naquele nobre gesto, quanto nobreza naquele homem simples e dominador pelo atrativo!

Mas tanto não é para tanto, e vovô se foi mesmo assim, deixando um buraco aberto e papai assentado na cadeira de cabeceira. Foi-se magro, de cabelos brancos deixando um rastro de impressão de que queria ficar mais um pouco até nos ver crescidos e seguros...deixando essa sensação de que está tão vivo como este agora, como essa respiração aqui.[...]

Na ausência do vovô restou-me o encontro feliz com papai, meu terceiro grande herói.
Dele o meu querido e amado pai RAIMUNDO VIEIRA DE MORAES CORDEIRO, capricorniano, valente, autoritário, intransigente e coração de manteiga fora da geladeira, todo o resto herdado, do fim a esse recomeço.

Não foi nada fácil ser meu pai, hoje eu sei o quanto!

A convivência amplamente tumultuada por minhas rebeldias, desejos de fugas de casa, intermináveis discussões. Levamos a família várias vezes ao limite!

Mas nem sempre foi assim...Tive com ele uma infância e um início de adolescência totalmente coberta afetivamente pela presença de homem-pai viajante alternando-se entre viagens que nos deixavam melancólicos contando o retorno ‘na folhinha’ e aqueles poucos dias que eram de felicidade sem conta em sua companhia. Dias e dias dormíamos na mesma cama que virava ‘a camona’, com brincadeiras de ‘o que é isso, pai?!’, dias e noites entre gargalhadas barulhentas na barriga naqueles encontros mínimos mas sem fim. Qualquer coisa que viesse do papai era festa, qualquer conversa mais séria valia como uma surra, porque ele sabia como plantar cada palavra no seu devido lugar aclamando nossa consciência do ato praticado e o arrependimento copioso que nos tomava de emoção. Quase sempre as conversas com papai terminavam em choro.
Papai sempre foi um homem da palavra firme que não volta e que se voltava, voltava apenas com ele no reservado do quarto, no íntimo de um lugar que só ele sabia onde e como era.

Hoje eu já não recordo quando deixou de ser assim, do quando fomos nos distanciando e resumindo nossa relação a um pedido de benção respeitosa, cordial e sem a esperada carência de regularidade na relação pai-filha. mas da minha parte o caminho de volta já está aberto.
[...]

CONCEIÇÃO é desse modo, a parte que traduz a minha mulher [a] guardada.
A parte que sempre me neguei engrandecendo a força desses homens que me fizeram Joana D’Arc de mim mesma, que me invadiram a vida inteira e me negaram o direito de cultivar a ROSA que desabrochou na ilha, que voltou para casa jardineira, arrumadeira, afável e missionária.
Mas não há como negar de todo modo que DA CONCEIÇÃO foram esses homens que hoje voltam revisitados, que me [e] levam a entrada desse céu criativo que os olhos não capturam, outros sentidos/sentimentos são convocados para ajudar.

Esses átrios que antes eram três, hoje espelhados nesse 7 me conduziram por longo caminho de decisões, escolhas, ultrajes, carências e inibições.
Imperadores que sempre estiveram me animando, nutrindo e ao mesmo tempo condicionando, de alguma forma, como algo que eu mesma criei e permiti crescer e se desenvolver tardando a pisada na cabeça da serpente que espreitou ‘essa mulher’ durante toda estrada a pé rumo a essa escola patriarcal que tratei de manter intacta, inviolável e amorosamente intocável na minha lembrança: minha escola Religião.
Agora não há mais o que esconder e nem quem o queira.

Os olhos desaguam e me deixam só, são eles os meus maiores acusadores.

[...]

Hoje, felizmente é esse um CORPO que TRAI.





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