Travessia



O cabelo tinha o aspecto de palha vermelha esparramada ao sol cozendo fios para uma possível tintura vindoura. Diziam alguns, “um cabelo rebelde e arredio que necessitava de trato constante!” pelo seco volumoso e esvoaçante que era.
O rostinho redondo que lhe rendeu a alcunha de “cara de prato” ou “cara de lua”- vinda do avô adotivo materno- ajustava-se comportado naquele corpinho igualmente roliço atribuindo-lhe  realce aos traços fortes da menina mestiça “boa de boca”, irrequieta, de gênio difícil, organizadora das brincadeiras dos primos nas árvores do sítio do avô Diniz; aquela agarrada à saia da mãe ao extremo do tolerável. Pelo agarramento com a mãe chegou a apanhar inúmeras vezes sem que isso lhe representasse qualquer tipo de abuso físico ( e era!) ou mesmo atenuasse aquele amor que só crescia a cada nova repreensão.
A saia de chita vermelha barata de modelo escorrido até o joelho, conjugada àquela camiseta de crochê amarelo fosco, tecida com motivos simples de um mimo declaradamente artesanal, caiam-lhe como um manto careado e lustroso naqueles dias que como estudante assídua, dedicada e curiosa, encaminhava-se a pé à sala de alfabetização.
A rua comprida era levemente sinuosa, terreno íngreme, livre de asfalto à época, sendo pedra e piçarra o chão por onde deslizava as perninhas marchando, ora em passos, ora em pulinhos.
O caminho tenso de ida e vinda da escola tinha pontas bem definidas: a saída da casa era da mãe que a deixava diariamente na ponta da estrada, mãe que permanecia lá, intocável com olhos de águia até que o corpinho moreno sumisse ao longe, exato momento em que a cabeleira ruiva da menina aportava nos olhos da avó que a esperava no tempo intermediário do trecho, sempre à mesma hora, com a merenda sagrada do início da tarde. Assim  abastecia a netinha  até a merenda da escola, da qual a sapeca nunca se esquivara.
Num saco plástico colado ao corpo, um caderno pequeno e um lápis preto com borracha ponteira diziam de uma precariedade que não lhe furtava a graça infantil.  Ir à escola era mais que obrigação, era um rito, sem que tivesse esse nome para ela.
Uma escola que tinha nome de santa: Nossa Senhora de Fátima e a professora, Edna seu nome, uma moça pequena e gentil, de voz branda e comprometida com o ato de ensinar nunca surge em sua lembrança com relato de gritos ou resmungação a... 
A alfabetização aos seis aninhos de idade chegou fácil  assim, sem rodeios ou sofrimento para ambas as partes, porque para ela escrever as primeiras letras de próprio punho era como poder ir ao céu e pintar as estrelas, uma a uma, com os dedos da mão. Como uma iniciante apreciadora de canto lírico os olhinhos esbugalhavam-se na direção dos lábios da professora que lhe ensinava as letras como música delicada de acordes precisos. As palavras pareciam brincar de pega-pega num jogo divertido de professora e aluna e, disso, ela gostava muito de brincar e brincar. 
Esculpia-se ali, lentamente, talho a alho, vindos pela voz e os gestos da educadora, uma menina de alma poesia.
Não é difícil saber porque havia um sentido em ir à escola... e outro em voltar pra casa, sempre pelo mesmo ritual de chegada e permanência,  hoje traduzida em saudade que as vezes não tem esse nome, nem finitude, muito menos hora de reaparecer.
As paredes da sala de instrução fechadas  por ripas de madeira de cor surrada levemente afastadas entre si, deixavam vazar dentro daquele lugar  uma parte da rua que parecia conversar com a turma dentro da sala, dividindo com a jovem mestra as lições do dia, das tardes de sol e chuva naquela vila antes conhecida como Sorriso.  
Uma criança e suas letras que todo dia voltava pra casa com o saco plástico mais cheio de coisas pra contar, dividindo com o caderno e o lápis a vontade de descobrir um mundão de outras coisas no dia seguinte, coisas que ela experimentava nas brincadeiras de fundo de quintal da casa velha da 4ª Rua entre Berredos e Andradas, com os irmãos menores e os vizinhos da rua.
Um lugar onde tudo virava qualquer coisa e ela vivia o mais encantador dos “contos de fadas” cotidianos: as inúmeras viagens que fazia numa vida carregada de cor, cheiro, gosto, sentido e admiração.
Às vezes eu volto por esse mesmo caminho, só  pra levar flores pra criança que eu fui.

Rosilene Cordeiro

(Marudá/ PA, 06/04/12, 14h30’, em trajeto)


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