Somos muitos...





QUEM CORTOU A LÍNGUA DE FEITICEIRA QUE OS OLHOS DO MUNDO TEMIAM?
Expressão recolhida do capítulo 34, da obra O MARAJÓ, de Dalcídio Jurandir, é o título do mais novo filme do COLETIVO RESISTÊNCIA MARAJOARA, que estreia dia 17de julho, numa segunda ação IDEA 2010, no Município de Soure, Ilha do Marajó, coordenada localmente por diversos atores e instituições locais, como o PONTO DE CULTURA CRUZEIRINHO, DEPARTAMENTO DE CULTURA DA PREFEITURA DE SOURE e o RESISTÊNCIA MARAJOARA.



© DALCÍDIO JURANDIR (O MARAJÓ - Capítulo 34)

“Nhá Leonardina cinge o corpo com a faixa, invoca baixinho o caruana e corre em direção ao lago.

Anda pelo campo, apanha flor de batatarana, ouvi o grito do sapo apanhado pela cobra e o olha fixamente o gado. A pajé sentou à beira do lago, as mãos murchas e trêmulas, a voz tão cansada.

À noite Orminda encontra a Nhá Leonardina no chão, brincando feito criança, cantando baixinho:

Atin-nan-nan

Dinlindandan

A pajé perdia o poder da invocação. Aquelas palavras não tinham mais significação para o caruana com quem a velha Leonardina tivera uma vivência tão longa e tão misteriosa. E em vão Orminda tentava levantá-la e conduzi-la para a barraca.

Aeuals palavras, queixa ou súplica, onde o poder das palavras? Quem cortou a língua de feiticeira que os donos do mundo temiam?

Corria ao longo da praia. Perdeu a voz, perdeu a memória dos encantamentos, o fumo do cachimbo perdeu o dom do mistério. Para onde o fumo que enche as almas, acompanha os destino, embalsamo os feitiços, ronda em torno das sessões da meia-noite, puxa dos poços e dos lagos as vozes da vidência? Onde estás, Cavalo Marinho? Onde perdi meu corpo bonito, mais bonito que o de Orminda? Por que dei meu corpo para a pororoca, por que perdi, bichos do fundo, a minha força de enfeitiçar e de fechar os corpos contra o alheio enfeitiçamento?

Só era a simples lembrança da toada:

Mureruereua

Atin-nan-nan

Os pescadores estendiam as largas redes de lanceação em pleno lago. Dentro d’água cercavam os peixes como vaqueiros na malhada. Seus gritos significavam que a safra da lanceação era compensadora. A noite clara parecia inimiga dos peixes e do lago.

Os caruanas não voltavam. Nhá Leonardina olhava o céu, as águas e tremia. As redes avançaram sobre o cardume dos peixes. O vento aumentou, Os campos caminhavam sem fim com a marcha das estrelas.

Com a ponta da faixa arrastando no chão, as mãos apalpando a sombra, a feiticeira corria, os cabelos espalhando-se na noite, como o vento e as vozes dos pescadores.

O lago a endoidecia. Orminda pedia socorro. Na boca do lago, junto a um bote encalhado na lama, três pescadores bebiam, silenciosamente. Não escutavam os pescadores do lago, os bacuraus, nem o grito de socorro de Orminda.

Nhá Leonardina estacou. Caiu na terra, principiou a brincar com imaginária sbruxas, canou um acalanto. Desaparece o Cavalo Marinho, o cachimbo, o reino da feitiçaria. Em seus olhos, em sua voz, em seus gestos o ar da infância que voltava. Suas lagrimas caíam lentas pela faixa e pelas coxas sujas de terra. Esse acalanto Orminda desconhecia. Vinha da infância cheia de verme, solitária, vivida num jirau sobre a lama onde as cobras deslizavam.”

_________________________________________________

Comentários

Postagens mais visitadas