In-frequencias introdutórias...por um re-começo de antes, antes de antes, bem antes e distante que o fim!
Segue
o texto.
Nasci um grão minúsculo e simbólico na conjugação inicial da família “da Conceição Cordeiro”, fruto de relações bastante conflituosas e aparentemente inconciliáveis entre as mesmas: a família do meu pai não aceitava minha mãe porque ela era negra, e dela diziam PRETA, sendo este o único e intransponível motivo da repulsa que tinham por ela. A família da minha mãe gabava-se em não aceitar papai, porque ele, além de ser “uma amarelo sem eira nem beira”, era um jovem alcoolatra em franca ascensão e, portanto, para eles, “sem nenhuma perspectiva futura” para ela, no caso de constituir familia. O sentimento dos jovens moços, no entanto, a duras penas sofreu e resistiu e, depois de oito anos entre brigas, preconceitos e discriminações, vindo de ambos os lados, quis “o destino” que uma criança chegasse a essa contenda, para que eu chegasse para, finalmente (na fala dos meus pais) pôr fim a essa discórdia de quase um década, sem lógica, nem fundamento substancial sob a qual repousava, tão somente, o desconhecimento, a ignorância e a intolerância étnica de ambos os lados. Em outras palavras, sendo mais direta e clara: RACISMO!
Nasci um grão minúsculo e simbólico na conjugação inicial da família “da Conceição Cordeiro”, fruto de relações bastante conflituosas e aparentemente inconciliáveis entre as mesmas: a família do meu pai não aceitava minha mãe porque ela era negra, e dela diziam PRETA, sendo este o único e intransponível motivo da repulsa que tinham por ela. A família da minha mãe gabava-se em não aceitar papai, porque ele, além de ser “uma amarelo sem eira nem beira”, era um jovem alcoolatra em franca ascensão e, portanto, para eles, “sem nenhuma perspectiva futura” para ela, no caso de constituir familia. O sentimento dos jovens moços, no entanto, a duras penas sofreu e resistiu e, depois de oito anos entre brigas, preconceitos e discriminações, vindo de ambos os lados, quis “o destino” que uma criança chegasse a essa contenda, para que eu chegasse para, finalmente (na fala dos meus pais) pôr fim a essa discórdia de quase um década, sem lógica, nem fundamento substancial sob a qual repousava, tão somente, o desconhecimento, a ignorância e a intolerância étnica de ambos os lados. Em outras palavras, sendo mais direta e clara: RACISMO!
Sou,
assim, a primeira filha de uma família pobre e periférica, moradora do distrito
de Icoaraci, na cidade de Belém do Pará, composta por meu pai Raimundo Vieira
de Moraes Cordeiro, minha mãe Higina Maria da Conceição Cordeiro (in memória), meu irmão Hertes, falecido aos
dois meses de idade por problemas cardíacos, minhas irmãs Roziléia e Rosileide,
e meu irmão caçula, Raimundo, o Junior como é chamado amorosamente por todos
nós. Com eles vivi muitos momentos importantes, lindos, engraçados, duros, risíveis,
sacrificantes e inesquecíveis dias de muito ensinamento e aprendizagens jamais
esquecidas na teia existencial posto que estes formam a parte vigorosa da minha
primeira relação com o mundo transmitida e compartilhada no cotidiano dessa
família sobrevivente da exclusão social das inúmeras famílias conglomeradas nos
diferentes recantos dessa Amazônia periférica paraense da qual tão pouco
sabemos.
Tive,
desse modo, uma criação entre livre e regrada porém orquestrada sob a batuta
disciplinar dos adultos com que convivi entre dois quintais memoráveis: o
terreno do meu avô, Diniz Cordeiro do Amaral, um quintal que tinha nome,
“Retiro São João”, de sua propriedade, localizado no bairro do Tapanã-PA, o
qual de tempo em tempo visitávamos gerando sempre grandes encontros familiares,
juntamente com os tios, tias e primos que lá residiam e residem até hoje; e o
terreno da nossa casa, no qual morávamos, terreno vizinho da vovó Mimita, Dona
Minervina da Conceição Pereira, minha avó materna com quem dividíamos o “chão,
o pirão e o cinturão” (posto que além de caridosa e bastante prestativa, vovó
era bastante severa e nos mantinha sob a égide de uma vigilância madura e sem
pausas para nossas traquinagens infantis.
Tais
espaços ainda existem e, ainda hoje, as brincadeiras imaginativas, as risadas,
os gritos e correrias infantis podem ser vistas e ouvidas com inteireza na minha
memória, bastando para isso apenas fechar os olhos e conectar o coração. Um ch8eiro, um sabor, um objeto,
uma situação específica, qualquer coisa, eventualmente, aciona esses lugares
memoriais onde ressoam as vozes dos meus pais, do meu irmão caçula chamando por
mim e minhas irmãs disputando brincadeiras comigo. Vozes dos meus vizinhos que
ali nos visitavam para conversar, jogar conversa fora nas horas vagas e,
sobretudo, as vozes dos meus avós, Diniz e Mimita contando causos, ensinando a
viver, dividindo a comida e o “ralho”, quando era preciso.
Vozes
memoriais cortando as imagens desse mundo gigante, maravilhoso e holístico que
fui descobrindo dali nas histórias que vi, ouvi, imaginei e inventei ao longo
dessa infância a partir dos fatos reais que a existência me deu a conhecer
nessa grande família em que vivi. Uma criança ouvidora de histórias, não
histórias de visagens, nem de ficção, nem de mitos, mas histórias de gentes, de
vivos, de trabalhadores, das dores e das alegrias reais de um mundo vivo,
visível, audível, por vezes hostil, mas narrativas encantadoras para mim.
Histórias com idade, espaço, tempo, gênero, mensagem ao estilo “moral da
história”, com endereço, nome e, às vezes até sobrenome.
Recordo-me,
das inúmeras vezes que papai nos levava à cidade de Belém, ao centro nervoso da
sede da urbanidade, a capital, onde ficava o comércio varejista, sempre abarrotado
de vendas, dos fluxos e estímulos visuais e sonoros bem característicos de uma
capital agitada, num crescente desproporcional àquela brejeirice típica da
capital do Pará. As viagens de ônibus que fazíamos tinham muito sentido para
mim, sobretudo quando tinha a oportunidade de ir sentada na janela lateral do
mesmo contemplando toda a belezura do trajeto de entorno. Eram momentos espaçotemporais
nos quais os fenômenos insistiam nos visitar. Tempo em que sentia não apenas o
vento fresco da brisa refrigerando minha face, era como se algo bem maior me colocasse
em relação direta com essa vida ao longo das vias públicas, uma vida lateralizada
mas que parecia fazer parte da minha realidade como nenhuma outra. Um sentimento
que despertava em mim o desejo de conhecer mais e mais, uma espécie de fome naquelas
paisagens, uma espécie de fúria em pular daquele veículo e desvendar a rua, numa
imaginação que me fazia embarcar em muitas viagens interiores nas quais me
expandia e passava a construir essa cidade desconhecida dentro de mim, já naquele
meninice tão provida de imaginação.
Ali, nessas vivências íntimas e solitárias, a meu modo, buscava
uma relação de tudo com tudo o que me permitia construir o mundo como um
importante centro de força, centro nervoso potente e inesgotável de
investigação dos meus sentidos, voltando-se para os saberes que eu gostaria de
conhecer sem, contudo, sentir a necessidade de estabelecer qualquer compreensão
daquele todo vivido. Naquele tempo, bastava sentir e só. O que provavelmente se
encontrasse no que Durand (1995, p. 34) denominou uma das formas de apreender a
imaginação, esta representando, portanto, “fantasia vulgar” produzida por um
intelecto passivo que apenas justapõe imagens, sem significações efetivas sobre
elas, sendo a outra forma aquela que assume um papel relevante, ao “criar uma
unidade realidade
Foi,
assim, que me vi uma menina fabulante, tímida, algumas vezes solitária,
silenciosa e retraída e em muitas outras inventora, guardião dos colegas, “arteira”
(termo que em nossa região refere-se a uma criança sapeca, traquina, danada)
líder das brincadeiras de quintal e de rua (nas poucas vezes que meus pais
consentiam nossa saída de casa para brincar do lado de fora). Uma organizadora
de brincadeiras motivada pelas sensações, pelos sentidos nos quais a relação do
meu corpo infantil com o mundo em redor ocorria pela experimentação, experimentando-me
e vivendo-o em palavras e gestos, nas imitações dos ‘mais velhos’ com quem
convivi em busca da retórica do meu próprio corpo nesse mundo, conforme FOUCAULT,
1987 declarava.
Esses
dados preliminares abrem algumas outras reflexões atuais que acredito
dialogarem com o presente trabalho, como o pensamento de que os cinco sentidos
do meu corpo poderiam, muito bem, ser sintetizados em dois, visão e audição, sem
prejuízos no exercício das funções orgânicas e das percepções derivadas dos
demais. Me faz intuir, inclusive, acerca de uma outra constituição
físico-poética que permite ver este corpo memorial composto por “grandes olhos
e ouvidos profícuos”, ambos bastante generosos: olhos e ouvidos educados na
minha infância, adolescência e juventude
potencializando não apenas o ver e ouvir das coisas e fatos do mundo,
mas tocar, cheirar, sentir e experimentar dos sabores e dissabores da vida por
esses canais de interlocução dessas mensagens e conteúdos que constituem a base fenomenológica desse corpo cotidiano que ora busco
entender cientificamente.
Deste
modo fui me relacionando, descobrindo, encontrando, cruzando, achando e
perdendo, desvelando e devorando a cotidianidade da vida em cores, tamanhos, formas,
texturas, textos, códigos, imagens, sentimentos e sensações mundanas pela
imaginação criativa permanentemente ativada em tais contatos e relações. Visão
e audição corroborando para o despertar de um corpo corrente, rede, meio e
mensagem por onde todos os poros acionados pelos sentidos, pelo sensível foram
me possibilitando construir um pensamento em torno daquilo que move a presente
pesquisa, o universo criativo que atualmente alia minha atividade artística à
vida imediata na qual me compreendo sujeito participante, objeto em permanente
indagação, um corpo objeto subjetivando-se em travessias nas estradas do mundo.
Um corpo objeto-sujeito de si, individual e plural esculpindo-se entre audição
e visão do mundo sendo e estando com este em diferentes momentos, com
diferentes pessoas e em diferentes espaços os quais me permitiram aprender
dele, junto a ele, sentindo-o, entre as relações familiares, comunitárias e
sociais de uma cidade cada vez maior e mais intrigante. Uma pesquisa sempre em
aberto me convidando a entrar.
A
educação integral a que fui submetida pelos sentidos do corpo, proporcionada pelas
inúmeras possibilidades de resistência que o afeto manifesto em nossas relações
fraternas foi nos conferindo de forma mais proximal e intensa estendeu-se até
meus quatorze anos quando, por força da baixa renda familiar e precariedade de trabalho
para os meus pais, minha família mudou para a Ilha de Caratateua, na comunidade
do Tucumaeira na Ilha de Caratateua[1],
(onde não havia escolas de ensino de segundo grau), ‘deixando-me para trás’,
com um acervo substancial do qual não consegui mais me afastar.
Assim,
não restava-se outra alternativa senão ser acolhida por minha avó materna, uma
vez que precisava seguir meus estudos escolares na área urbana do distrito.
Nesse gsto de acolhimento familiar, sem o saber, estava entrando em contato
direto com a experiência que dividiria minha vida em dois: minha história
antes, num estado de observação, somente e após o contato participante com a
missão nos serviços que vovó Mimita prestava à comunidade da forma mais genuína.
Ela que, por meio do acolhimento familiar estendido ao aconchego que demandava
a quem procurava em busca de um toque físico, igualmente familiar,
proporcionava massagens terapêuticas, entre as tarefas da casa, na feitura de
remédios caseiros que aprendi a manipular e preparar em sua habilidosa companhia,
vendo-a e ouvindo-a diariamente transmitindo ensinamentos que fariam toda
diferença na forma de entender e me relacionar com a vida dali por diante.
Foi
exatamente ali, quando ingressei no seu convívio direto na casa de Minervina, a
vovó Mimita, que passei a usufruir de uma outra demão significativa na camada da minha
formação humana em regime não-formal (mesmo considerando que os saberes
aprendidos em família, derivam, igualmente, de práticas organizativas,
sistematizadas pela experiência). Foi ao lado da minha avó, com ela dividindo todo
o tempo de aprendizado sonoro e imagético de uma vida que começava a se
descortinar para mim, que descobri a educação pelos saberes e pelos sentidos,
tendo em pessoas não letradas, mestres e mestras que de um conhecimento
milenar, até certo tempo atrás negados pela ciência moderna, mas hoje, assimilados
como essenciais ao conhecimento do mundo.
Tais
vivências educativas de natureza não-escolarizadas iniciadas nos meus 14 anos de
idade se davam entre conversas ao longo do dia, rodas de diálogos a beira do
fogão ou do tanque, enquanto ela plantava ou colhia plantas no seu quintal, durante os preparos de suas “poções” e
ungüentos, chás e garrafadas cujas receitas me repassava oralmente, pacientemente
e nos atendimentos domésticos que realizava a quem lhe procurava. Foram anos de
ações que expandiram-se até meus 43 anos, quando já sem força física e profundo
abalo emocional causado pela saudade de mamãe, sua filha amada que havia
falecido no ano de 2008; mas com redobrado ânimo espiritual, ela foi ‘viver
entre as estrelas’, já na casa das suas 93 primaveras. Tempo exato em que minha
iniciação ao “dom” (como ela mesma se referia aos trabalhos curativos que
realizava) e que a partir de então vovó deixara comigo, como práticas de cura
cabocla periférico-urbana nos atendimentos em casa começou a se manifestar de
forma sistematizada e gradativa.
Experiências
domésticas atravessadas poeticamente pelos demais canais receptivos, expressivos
e comunicacionais do/no corpo que trataremos de abordar, de forma mais
detalhada, nos tópicos seguintes.
A
vivência sonoro-imagética em rede: das memórias televisivas e radiofônicas na
constituição poética do corpo
Nessa
abertura de transmissão narrativo-verbal, em interface com os campos da comunicação,
das linguagens e da cultura, penso ser totalmente necessário declarar que cresci,
do mesmo modo, impactada tanto por essa vida real, familiar, comunitária,
diária e imediata como pelas representações sonoras e imagéticas derivadas desta
pelos veículos de comunicação a que tive acesso. Uma criança que se tornou
adolescente bastante ligada, “vidrada” eu diria, em Televisão. Tive, paralela à
vida de quintal, uma meninice completamente envolvida pelas imagens televisivas
que, para mim, significava um outro modo bastante atraente de conhecer a vida: saber,
ver, ouvir, tocar e sentir as “coisas e fatos do mundo”, de ter acesso a outras
pessoas, outros lugares, outros conhecimentos que não tinha em casa, uma vida como
produto oferecido pela TV nos seus diferentes programas que assistia entre as
décadas de 70-80, sobretudo, nos canais
em que sintonizava minha audiência dos quatro aos onze anos de idade.
Lembro-me
que nessa época ter um televisor em casa era oneroso para uma família de baixa
renda como a nossa, Os aparelhos eram grandes, as telas largas, as imagens
apresentavam-se em preto e branco e não havia controle remoto para as
configurações e acesso às funções do aparelho: ligar, mudar de canal e ajustar qualquer
problema de ordem técnica, das mais simples às mais complexas eram feitas de
forma manual, no girar e girar de botões
de fácil identificação e manuseio pois localizavam-se na parte frontal da
mesma.
Recordo-me,
ainda, que vários aparelhos foram danificados em casa, por mim, nesta infância,
por conta do incessante “girar e girar de botões”, mania frenética e
intermitente entre uma emissora e outra na hora do ‘comercial’ (como chamávamos
a propaganda, naquela época) em busca de uma programação que não fosse comprometida,
interrompida pelos “reclames comerciais” que ao meu ver eram chatos demais e
“cortavam” as histórias que assistia com devotada atenção de expectadora mirim.
Quando não estava brincando no quintal ou na escola, era na televisão que
mergulhava para me divertir. Assistia de um tudo, qualquer programa me
apetecia, qualquer imagem tragava minha imaginação para dentro dela e para
dentro do aparelho.
Sons,
imagens, cores, cenas, corpos em cenas, trajes mirabolantes, objetos
cenográficos, efeitos sonoros e visuais de alto impacto, construíram em mim um
‘lá’ onde só a TV era capaz de nos projetar saindo daquele sofá ou daquela cama
coletiva que as dividíamos nas salas das casas, a nossa ou a dos nossos
vizinhos e em casebres pouco
confortáveis mas sempre os únicos que dispunhamos. Muitas vezes na falta da TV
em casa tínhamos sessões coletivas de determinados programas televisivos na
casa dos vizinhos da comunidade no horário noturno, “horário nobre” do jornal e
da telenovela a quem ninguém faltava, havia uma presença quase que religiosa
nesse encontro diário entre as famílias que dividiam aquela expectação passiva.
De
certa forma, era uma dignidade, uma espécie de honra, um tipo de status ter um
televisor familiar naquela época (anos 80 e 90), significava uma forma de acessar
o resto do mundo e não ficar isolado das informações e notícias do estado e do
resto país. Era também motivo de ter o que conversar no dia seguinte, de se
sentir “sabido”, de conseguir participar de conversas sobre fatos e
acontecimentos sociais, políticos, esportivos, religiosos, econômicos, entre
outros de grande repercussão com mais desenvoltura e segurança.
Todo
esse envolvimento tecnológico que meu corpo tinha com a televisão, no entanto,
apresentou-se bastante resistente com a chegada de outras NIT’S, sobretudo o computador.
Relutei, enquanto pude, ao ver-me obrigada a abrir um email; demorei,
consideravelmente a entrar nas redes sociais e tive muita dificuldade em manter
conversas por meios virtuais durante muito tempo. Tal resistência, reflito,
penso que possa ter sido causada pela obrigatoriedade de um tempo que exigiu de nós uma prontidão tecnológica, ao mesmo passo,
em que foi negando determinadas práticas convencionais, tais como as conversas
domésticas, os encontros presenciais, o vivido, a experiência no seu sentido
lato.
Ao
telefone fixo domiciliar tivemos acesso apenas na idade adulta (e por muito
pouco tempo depois pela chegada das redes e dispositivos móveis). Isso do mesmo
modo em que a rotina computacional desenvolveu-se com lentidão em minha vida,
sendo assumida gradativamente, a contragosto, pela necessidade que passou a
fazer parte do meu cotidiano docente entre planejamento, execução e avaliação dos
processos educacionais a que estou submetida como pedagoga que sou; num ciclo
contínuo, bem como para acesso às correspondências de cunho interno à função
que compulsoriamente entraram (sem volta) no universo da escola.
Tal
frieza ocasionada pela estranheza com que fui lidando com esse alargamento
midiático, pelo distanciamento com que fui lidando com essa “intromissão
midiática” a mim tão veloz, tão feroz em
nossa vivência até então pouco consumista, com o passar dos dias, foi desaparecendo
pela familiaridade com que as diferentes formas de introdução dessas tecnologias informacionais
contemporâneas foram passando a fazer parte da vida diária, sem mistérios,
tornando tanto o trabalho, quanto o estudo, a comunicação, a livre expressão e
as relações fraternas compartilhadas. Fui entendendo-as como um meio de também
estar em contato com o mundo, agora um mundo tomado por uma outra lógica: pela tecnologia digital cada vez mais acessível e assumida
por uma parcela significativa das pessoas, como alternativa comunicacional
interterritorial, ageográfica, atemporal juntando o todo da relação
passado-presente-futuro nesse ‘agora’ da comunicação em rede: toda informação,
toda expressão, toda comunicação, em todos os lugares e simultaneamente, num
tempo-espaço entendido como uma espécie de “durante duradouro” como mais
adiante trataremos de tratar.
Tecnologicamente
falando, minha alfabetização tecnológica virtual se deu em lan houses, contando
sempre com a ajuda de amigos mais inteirados no assunto, descobrindo, a partir
de então, uma outra modalidade de mundo que se expressava virtualmente, que
corria em rede e numa frequência bem mais acelerada que a vida hodierna que já
conhecia e acreditava dominar tão bem. Vi-me, assim, uma pessoa ainda em
processo de letramento informacional, descobrindo nos materiais e nas matérias
dessa vida virtual um laboratório magnífico de pesquisa com a qual comecei a
desejar lidar de forma mais sistemática no campo das teorias científicas entre
corpo-performance-mídias-cidade visando um aperfeiçoamento diário, paulatino,
hoje não mais ainda vinculado às minhas necessidades imediatas no âmbito do
ensino, da pesquisa, da extensão, mas sobretudo ligado a vontade dessa comunicação
em rede que representa meus atuais interesses de pesquisa: um corpo em relação,
em vários tempos e espaços, em diálogo com diferentes pessoas, pensamentos,
sentimentos, espaços, tempos, praticas e reflexões nas quais ele se reabre a
novas aprendizagens, descobertas e sentidos.
Acredito,
hoje, que a vida em sua precariedade mais sublime, numa família pobre afastada
do centro nervoso da cidade, que não nos permitiu o acesso regular à prática da
leitura do jornal impresso, pois meus, pais com pouca escolaridade (ambos não
tinham completado o Ensino Fundamental à época) não eram leitores assíduos e,
portanto, esse veículo comunicacional foi pouco explorado em minha família, no
entanto nos possibilitaram outras estratégias de relação com a mídia. Livros, apenas tivemos os didáticos e a Bíblia Sagrada
que sempre adorei ler desde menina, pelo conteúdo das histórias de diferentes
cidades com culturas próprias, as batalhas entre os povos, culminando sempre
com heróis e vencidos; e pelos ensinamentos divinos que o Deus cristão católico
( o único que conhecia por meio das histórias lids) ia passando a seu povo
entre bem e mal, pecado e graça, céu e inferno, imagens que além de suscitarem em
mim o desejo de criar minhas próprias histórias, me oportunizavam aventuras
imaginativas onde apenas eu decidia o que podia ou não entrar, o que tinha ou
não tinha qualquer valor positivo e/ou negativo para mim: na minha imaginação
eu me permitia apenas ‘ser e estar’, todo o resto era desnecessário.
Quanto
ao rádio, não! Esse faz parte dos recônditos auditivos mais carinhosos e
representativos que guardo na lembrança, desde a infância. Desde menina me vi crescendo
ouvindo rádio, tanto o da casa do vovô Diniz, meu avô paterno, quanto da vovó
Mimita, minha avó materna. Programas como “Alô, alô
interior”[2],
“A Patrulha da Cidade”[3]
(comandada pelo inesquecível repórter policial Adamor Filho) e as Novenas de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro[4],
na igreja homônima, localizada no Bairro do Telégrafo, em Belém-PA, compuseram
a paisagem sonora que embalou, por anos, minha relação radiofônica com a vida.
Uma audição infantil atravessada por uma programação adulta, do gosto dos meus
pais e avós, compartilhadas comigo no dia a dia entre o meu brincar e aquele
aprender que, sem que eu pudesse imaginar, já estava ali embutido.
Toda
essa mistura entre imagens e sons me mantinha ativada, sinalizava uma vida
maior que ali mesmo já pulsava imanente, ao mesmo que voltada a uma
transcendente conexão que, futuramente, seria justificada por uma atração expressiva
pelo campo comunicacional da vida entre interesses de estudo e pesquisa.
Talvez, e muito provavelmente, daí originando todo um gosto mais refinado pela
crítica televisiva, pela mídia rádio, como o qual na fase adulta me reencontrei
num projeto denominado Projeto Radionovela[5],
da Escola de Teatro e Dança da Universidade Federal do Pará, liderado pelo
saudoso artista, locutor e professor Walter Bandeira[6],
que fez sua passagem astral no ano de 2009 nos deixando após de dois anos de
uma vivência sem precedentes no componente Voz e Dicção, disciplina a qual ele
dedicava especial atenção tendo nela seu campo de concentração na formação de
atores e radioatores no âmbito das artes cênicas.
Palavras,
códigos lingüísticos entre imagens, sons, movimentos, criação e interpretação
fazendo parte, desde muito cedo da realidade a que Sarmento, 2005 se referira
como gramáticas das culturas infantis, na qual as crianças apresentam sua
própria lógico-formal, distinta do universo adulto. Para ele, uma alteração
lógico-formal que não significa que as crianças operem mentalmente pelo
ilógico, muito ao contrário: essa organização própria deriva-se como patente na
organização discursiva das culturas da infância e é co-existente com uma
organização lógico-formal do discurso infantil, que permite a criança
percorrer, simultaneamente o mundo real e o imaginário. (p. 375)
Tal
pensamento discursivo nos faz refletir que os estímulos viso-sonoros do corpo infantil acionaram
outros encontros perceptivos, numa rede
extracorpórea pulsante e cada vez mais plural, a qual, por sua vez, acionou um
fluxo lingüístico imaginativo de dentro buscando um eco, uma relação dentro-fora
cada vez mais latente a qual se manifestou, primeiramente nas brincadeiras
infantis, maximizando não apenas informações mas toda uma formação a partir
dela, bem como fazendo circular, reverberar freqüências múltiplas num campo
específico que se chama corpo: corpo humano em formação, corpo infantil
memorial, corpo saudade, corpo história, corpo narrativo, corpo político, corpo
geográfico, corpo coletivo, corpo tecnológico, corpo território, corpo
criativo, corpo estendido e ampliado (e não esgotado conceitualmente no
tempoespaço de seu ser e/ou estar no mundo) que pode ser lido, nas linhas dessa
pesquisa, como rede.
Uma
rede que começa por entender-se imaginativa, posto que, para Carvalho (2013, p.
212) o brincar é um tipo de linguagem, uma forma de sentir, de pensar, e agir
permeado de simbologias guiado pelo impulso lúdico. E ainda “ a ludicidade
presente no brincar da criança está relacionada com a emoção, com os sentidos,
e com o lado considerado como não sério do homem, daí a brincadeira está mais
relacionada com a criança que com o adulto”.
Esse
fabuloso campo imaginativo em relação com os meios de comunicação a que tive
acesso na primeira infância, apesar de mágicos constituíram-se menores diante
do acesso que mais valioso vivenciei dentro de minha casa e ainda nos limites
do nosso quintal familiar: as vozes de meus pais, minhas irmãs e irmão e,
sobretudo dos meus avós, com quem tive o privilégio de viver uma infância
afetiva, festiva e amorosa, no dia-a-dia ordinário de nossa existência, possibilitaram
meu contato visual e auditivo ao alcance do meu/nosso corpo como o melhor
relato de uma meninice familiar feliz e memorável. E desta derivam algumas
relações, dentre as quais aquela relação específica que, por certo, dá origem a
fase substancial na minha trajetória formativa, aquela a qual passo a me
inclinar quando me percebo crescendo nos rincões da pesquisa pois me vejo
enredada a ela, envolvida pela reflexão que a linguagem da arte me dá a
conhecer, a qual, sem dificuldades, leio em conexão com essa trajetória
anterior a qual acabei de expor .
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