Cançada, excessivamente Maura, ao largo de Deus.


Publicado em domingo, 28 de fevereiro de 2016,  por Denis Bezerra (Pesquisador, professor, diretor teatral e ator ) no seu blog http://teatronopara.blogspot.com.br/2016/02/cancada-excessivamente-maura-ao-largo.html?spref=fb


Cançada, excessivamente Maura, ao largo de Deus.

por Rosilene Cordeiro

“Significada que só uma psicose, em todo seu esplendor, poderia consumar a longa greve que tinha sido toda sua vida”.
(Samuel Becket, citado na abertura de O sofredor do ver. Maura Cançado. Contos. 1968)
“Mãe adolescente, mulher rica que chegou a se definir como “esquizofrênica de carteirinha”, aviadora, homicida, cega, prisioneira, escritora genial. A mineira Maura Lopes Cançado (1929-1993) foi tudo isso: saudada como uma das principais promessas da literatura brasileira nos anos 60, “contista revelação” do lendário Suplemento Dominical do Jornal do Brasil – onde trabalhavam, entre outros, Carlos Heitor Cony e Ferreira Gullar – Maura passou a vida adulta entrando e saindo de hospícios e, numa dessas internações, matou outra paciente. Presa num hospital penitenciário, em condições precárias, desenvolveu catarata, ficou cega. Libertada, passou por uma cirurgia e recuperou a visão, mas não escreveu mais”.
“Aqui estou de novo nesta "cidade triste", é daqui que escrevo. Não sei se rasgarei estas páginas, se as darei ao médico, se as guardarei para serem lidas mais tarde. Não sei se têm algum valor. Ignoro se tenho algum valor, ainda no sofrimento. Sou uma que veio voluntariamente para esta cidade — talvez seja a única diferença. Com o que escrevo poderia mandar aos "que não sabem" uma mensagem do nosso mundo sombrio. Dizem que escrevo bem. Não sei. Muitas internadas escrevem. O que escrevem não chega a ninguém — parecem fazê-lo para elas mesmas. Jamais consegui entender-lhes as mensagens. Isto talvez não tenha a menor importância. Mas e eu? Serei obriga¬da a repetir sempre que não sei? E verdade: "NÃO SEI". Estou no Hospício. O desconhecimento me cerca por todos os lados. Percebo uma barreira em minha frente que não me deixa ir além de mim mesma. Há nisto tudo um grande erro. Um erro? De quem? Não sei. Mas de quem quer que seja, ainda que meu, não poderei perdoar. É terrível, deus. Terrível faz muito frio. Estou em minha cama, as pernas encolhi¬das sob o cobertor ralo. Escrevo com um toquinho de lápis em¬prestado por minha companheira de quarto, dona Marina. O quarto é triste e quase nu: duas camas brancas de hospital. Meu vestido é apenas o uniforme de fazenda rala sobre o corpo. Não uso soutien, lavei-o, está secando na cabeceira da cama. Encolhida de frio e perplexidade, procuro entender um pouco. Mas não sei. E hospício, deus — e tenho frio.” 
(Maura Lopes Cançado In Hospício é Deus. 1965. Grifos nossos)
“[...] quarenta e oito anos me separam de Maura e a publicação de seu primeiro livro. 2013 foi nosso ano inaugural, ano de primeiro contato meu com a obra, em que fomos apresentadas, literariamente.
Nos conhecemos exatamente ali, no momento em que o Denis, meu amigo há quase uma década, me apresentou um texto em 30 páginas pedindo que eu lesse com carinho e depois me pronunciasse quanto a sua leitura. 

Denis, já se confessava encantado com o que acabara de ler, mas queria ouvir minha opinião. Havia, inclusive, naquela ocasião, naquele gesto entre amigos leitores-atores a sinalização da possibilidade de interpretá-lo sendo dirigida por ele, posteriormente. Isso, por ser, digamos, uma pessoa na qual ele apostava ‘alguns tostões’ para dar vida a tão rica presença; vida cênica a uma genialidade que envolvia Maura em seu discurso solitário de muitas vozes, que a revelava em cada trecho descritivo de sua narrativa insalubre e fétida pelo rastro que deixava em nós.
O texto era uma adaptação do livro Hospício é Deus, da escritora Maura Lopes Cançado, realizada pelo escritor paraense Ney Ferraz Paiva, apresentada diretamente ao Denis Bezerra, para uma montagem cênica a ser desenvolvida como ação integrante da programação do Colóquio Blanchot, ocorrida em Belém-PA, no mesmo ano. Daí estabelecemos um pacto cavalheiresco, e neste primeiro aparecimento foi exatamente isso que fizemos: uma apresentação artística para composição de um evento literário. Ele atuando e eu o “dirigindo” como ele gosta de pensar.

Ocorre que em se tratando de performance a direção é totalmente desnecessária. Valemo-nos muito mais das iscas, das pistas, rastros e, sobretudo, os silêncios e ausências dos vazios a interromper as certezas que a cena vai propondo. Optar pela performance, aqui, foi um caminho oportuno. Contudo, antes disso, vamos ao texto.
À primeira impressão a sensação que decorre é a de invasão, mesmo, o estranhamento pela pureza e riqueza de detalhes que cercam o relato da autora. Um texto direto, sem rodeios, cru e de uma crueldade fabulosa e fabulante pela simplicidade e clareza com que ela vai descrevendo a mente, o viver e o sentir ‘daquela’ mulher por vezes sombria e atormentada, mas tão lúcida em insanidade, tão delicada, forte e nítida que, na verdade é ela mesma, numa autobiografia surpreendente de seu estado de paciente no hospício que a acolhera até o findar da vida.
Devastadoramente sedutor e inquietante, refiro-me, ainda, ao texto que ao meu ver é, ao mesmo tempo, uma vontade de entrega e negação, na mesma ordem em que vai nos desorganizando orgânica e emocionalmente, conseguindo preencher esse vazio largado por vontades antigas de experimentar uma densidade mais fria e experimental em teatro, chegando, inclusive, a romper com ele enquanto literatura.A literatura o prendia, igualmente; talvez nem fosse para teatro (pensava eu àquela altura). Mas o fato é de que trata da uma textualidade de uma realidade muitas vezes ignorada (não dramatúrgica e altamente dramatúrgica, se é que me faço entender!) a qual qualquer ator pesquisador com forte gosto pela literatura de qualquer natureza se dobraria sem esforço, num certo percurso mais amadurecido da carreira, assim, num jogo abismal, sem qualquer resistência. 
Interessante como sua escritura é feminina e livre pela forma com que se desprotege e rasga qualquer tratado de relação classista com estilo literário, ou classe social ou de gênero, pela visceralidade depravada e animalesca de um ser que vai diluindo-se nas palavras sem compromisso ético ou estético algum com seu tempo e sua condição de interNADA. Ela mesma declara que não tinha essa compreensão poética do que escrevia. Para Maura, tudo que escrevera foi dor, sua própria vida. 
Maura Lopes Cançado, mineira, literariamente surgida no Movimento Cultural Renovador (o instinto suplemento dominical do Jornal do Brasil, no final dos anos 50 ao lado de Ferreira Gullar, Reynaldo Jardim, Assis Brasil e outros contemporâneos notáveis) escreveu pouco, viveu o bastante para sentir-se só e sofreu o suficiente para sangrar em alguns relatos estarrecedores de interna no ‘cubículo 2’ que ninguém visitava. Um sofrimento salutar para sua escrita autoral, amoral, em Hospício é Deus (romance autobiográfico, um diário literário escrito em 1959 e publicado em 1965, tendo sido considerado um sucesso ímpar pela crítica, um dos melhores do ano), estendido ao livro de contos O sofredor do ver, 1968, nos quais se sagrou uma anônima brasileira sem precedentes.
Uma mulher em conflitos pessoais, sem amarras, estando totalmente subjugada a um sistema que a declarou louca isolando-a do que lhe restou do mundo, denunciadora desse mesmo sistema psiquiátrico nos anos 50, 60, 70 nesse trabalho com Denis, vira única condição a qual a persona Maura, da escritora Maura Cançado está sujeita ( porque aqui estou agora a me referir à cena): a vontade que a move para dentro desse abismo de tanto e de nada, com o derradeiro propósito de apenas Ser e lançar-se ao tempo da escrita, que para ela, sequer, seria elevado ao status de livro.
Uma mulher ignorada e nenhum pouco ignorante, revelando-se ao mesmo que re-definindo esse lugar da palavra “que instaura os discursos” que ela toma como sua apresentação pessoal em uma carta de liberdade sem tempo, mas muito bem localizada: um texto compilado em hospício, em uma tamanho estado de precariedade e confinamento no qual passou os últimos e tenebrosos momentos de sua existência terrena, que nos deprime só de imaginar. 
Pode-se dizer que esse é trabalho artístico sobre esse exercício entre literatura, teatro, dramaturgias pessoais e performance que ora nos comprime, ora nos dilata a ambos: sobre o seu período de internação no Hospital de Engenho de Dentro, do qual relata a si mesma, uma paciente na impaciência, Maura em excessos excessos de ver e sentir; sobre Denis em sua buscas pessoais e artísticas, nesse momento concentrado em memórias cênicas, história e teatro; eu nessa rota incerta, imprevisível entre cena e vida, essa fresta luminosa que nos cega e nos aclara a visão: do que temos e o que queremos com a nossa arte.
Logo, a mim fica bastante marcado o fato de que aquele e este, não serem textos para mim. Havia de ser o Ator Denis Bezerra que encerraria essa missão a quatro mãos, inicialmente: um texto de mulher, reescrito por um homem, “dirigido” por uma mulher, em-cena-do por um homem, o que, àquela época resolvemos fazer. Hoje o trabalho é dele.
De lá pra cá estão três anos de uma pesquisa performativa de fundura não mensurável em palavras. Muitos encontros, várias indagações, descobertas e perdas, muitas perdas. A primeira é aquela que fizemos ao romper com a adaptação e mergulharmos na integralidade do texto literário, no livro Hospício é Deus com maior propriedade e desconfiança, em adentrar o hospício de Maura e os nossos. A segunda é de optarmos pela performance por compreendermos que Maura, de tão boa torna-se fugidia, escorregadia, disforme reinventando-se em cada intervenção. O teatro a levaria de novo ao quarto no qual descreve, sucessivas vezes, sentir frio e estar só. Esse é um trabalho para ser com-partilhado com as ilhas que somos.
Maura Lopes Cançado, cançada de Deus ou apenas “Maura”, como hoje a intitulamos é, portanto, essa reverberação da insanidade clara como o dia, a dela, a dele, a minha, a nossa; da nossa loucura diária, da loucura e do hospício do Denis (brilhantemente vivida no interior desse período de pesquisa e de escrita de sua tese, na construção do seu doutoramento como amante pesquisador que todos sabemos que ele é; de professor e ator dedicado, apaixonado pela literatura, como todos sabemos e aprendemos a conhecê-lo; como artista re-descobrindo-se e reencontrando a cidade onde vive nos espaços onde se apresenta e pela qual milita estudando-a e compartilhando-a pelas cenas da memória). 
Um trabalho acompanhado por mim, seguindo, perseguindo-o, observando-o, conversando com ele nesse pisar inseguro, irregular, caminhando para sua 5ª [a]presentação, fugindo e aprisionando-nos mais e mais a ela. Deixando-a ir ditando os caminhos por onde seguimos e que vamos esquecendo para vermos os que ainda estão por vir.

Fazer parte dessa vasta programação que integra a “Instalação Performática MEMÓRIAS, RETALHOS E FIOS, cenas teatrais em Belém do Pará”, do Denis Bezerra penso que brinda um momento importante em nossas carreiras: a do Denis Bezerra como atuante, retornando à cena artística depois de alguns anos dedicados à pesquisa acadêmica e a minha como essa pessoa errante, aprendente de cena, cada vez mais inconformada e co-movida pelos estudos da Perfomance. Uma rastreadora de possibilidades em conflitos, uma observadora de fechadura, num inconformismo desejoso, feliz e sem tréguas dessa arte que de ser, já foi, que de ser em ser e ir em ir, sempre volta, sempre única, sempre outra, numa lesão em cada golpe que nos atravessa o ato.

Maura seria, então essa faca de duplo corte: um que nos pune em cada ato, outro que nos salva em cada marca, como esta que vai nos deixando cada vez que surge e desaparece nessa imensidão de imagens sem fim que vão surgindo e sumindo na névoa que deixou em nós,em nossos quartos brancos ‘nos quais ficamos incomunicáveis’, só nós nos sabemos.

E disso, me sinto, particularmente, contemplada e encantada e, porque não dizer, bastante satisfeita, uma co-realizadora participante, feliz.
Esse é um trabalho do Denis. 
E, com certeza, meu único ‘papel’ minha maior alegria foi contemplar seu aparecimento, vê-lo crescer, conversar, me emocionar e aprender com ele na pessoa desse jovem atuante. E como ele foi fundo...

Bem vindo, amigo, aos Estudos da Performance! Te recebo e saúdo com a intranquilidade, a insatisfação e a incompletude que os seguidores dessa importante linguagem artística conhecem tão bem, atributos sem os quais não estaríamos hoje nesse aqui.”
( Rosilene Cordeiro, Rosilene Cordeiro. Atriz-performeira amazônida paraense, realizadora de cena na urb, às margens da grande floresta)
SERVIÇO
Performance Maura.
Atuante: Denis Bezerra
Acompanhante artística de percurso: Rosilene Cordeiro
Objetos em cena: Denis Bezerra
Vídeos, imagens e projeções: Denis Bezerra, Rosilene Cordeiro
Dia 05 de março de 2016 (sábado) às  20 Horas
Teatro Claudio Barradas (Escola de Teatro e Dança da UFPA). 
Dom Romualdo de Seixas, 820, Umarizal, Belém-PA.








Rosilene Cordeiro (Atriz-performeira, professora, pesquisadora independente de corpo, performance e religiosidade amazônida. Mestranda em Comunicação, Linguagem e Cultura pela UNAMA em Belém-PA)

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