Carta do Mailson Soares, sobre o filme A Ilha de Mateus Moura, Belém/PA
Ilha Em 15 e 16 de outubro de 2013.
Posso em tudo até estar equivocado, menos no lhe querer bem.
Um texto para você Mateus, talvez, mais para o homem do que para o cineasta, mas para você.
Carinhosamente Mailson Soares…
Uma fábula? Um conto? Uma lenda? Um fato tenebroso e sombrio que se espalha e nos remete a algo “dos antigos” nesses nossos tempos “modernos”? Há algo de tenebroso na Ilha de Mateus Moura, saio da sala de cinema sem vontade de falar e com a sensação de já ter visto ou ouvido aquilo antes, ou algo parecido, talvez algo contado pelos meus avós, a Ilha tem cheiro de velho, de coisa assombrada, história contada e guardada na memória em noites que não havia luar ou que a lamparina iluminava e não se tinha outra coisa para fazer a não ser ouvir aquela história e ir dormir assustado, rezando para não sonhar com tudo aquilo…
Na minha cabeça o início dessa história (agora numa tela de cinema) funciona como um prólogo que já me anuncia por meio de uma voz que conta, quase incompreensível eu não sei se incidental ou propositalmente, a desgraça que está por vir. A leveza aparente de alguns nessa cena de travessia só fortalece e se contrapõe com a travessia que era feita por aqueles da narração, pelos prisioneiros ou “degredados”, porque a impressão que tenho é que eles eram levados ali para morrer (ou ainda são). Este sorrir inicial da primeira travessia ainda contrastará com as travessias que ainda serão feitas.
Outra sensação que me ocorre é que também somos levados a esta Ilha, pelas lentes do diretor, para morrermos um pouquinho, ou para refletirmos sobre a desgraça de nossos mortos e, quem sabe voltarmos dali um pouco mais vivos, ou renascidos, se formos capazes. Este com certeza é um filme de travessias. E precisamos para compreendê-lo de duas moedas, para colocarmos nos olhos do morto para que esse possa dar ao barqueiro em sua travessia para o outro mundo que lhe aguarda. Moeda de compra e de troca, que é um pacto com o expectador. Um acordo daquele que faz com aquele que vê. Quem sabe a “passagem” da viagem, da travessia feita por águas barrentas que às vezes não me lembram água, mas algo viscoso e escorregadio, um líquido, inicialmente, de certa desagradabilidade por onde deslizam as lentes da câmera.
Desde o início, portanto, a água já se instala como elemental. Água que pode ser vida e pode ser morte, sentimento, evasão, descontrole, limpeza, batismo, mistério, banho, entrega… Já há algo de estranho e assustador nesta sequencia. A flora vista na margem e a maneira como é mostrada, não nos apresenta nada de belo ou deslumbrante, apenas um terror e um medo contido. Talvez, a ser destilado no restante do filme.
Quando surge o casal em sua casa modesta em rotina sem assombros, talvez o filme ganhe um aspecto que eu não esperava, retorna aí em certo momento o problema técnico com o áudio. O texto dito pelo casal variadas vezes me incomoda profundamente, parece não caber em suas bocas, não há “liga” entre as imagens e o que eles dizem; sinto diálogos frouxos, ditos de uma forma… Como se os atores não sustentassem o texto, ou mesmo este texto falado não caiba ou seja menor que a cena. Talvez um apuro no roteiro ou uma oficina de preparação para os atores? Ou talvez, nem sejam tão necessários estes diálogos, que muitas vezes soam como já disse, menores que a obra. O que pra mim fica evidente na cena do quintal, onde o casal sofre e rola no chão a dor da perda do filho. Cena de intensa força dramática onde sem dizer praticamente uma palavra eles nos invadem com sua dor. É de uma carga dramática e poética incrível este momento do filme.
Esta sequencia ímpar, de belíssima força cênica comprovaria que este não é um filme de texto, que não precisa de texto, exceto em raros momentos, narrado, curto ou quase balbuciado pelos atores. Isto talvez, explique o meu desconforto com algumas cenas que penso serem desnecessárias e até clichês. E o cuidado técnico, como notoriamente percebe-se, na cena do parto que a barriga da parturiente é postiça. Mas detalhes técnicos como este são fáceis de serem resolvidos numa próxima produção. Mas pensando quem é Mateus Moura, seriam estes defeitos? Lapsos? Não, teço que não. Elementos como estes são muito marcantes para serem obras do mero acaso. Estaria aí, talvez, uma tentativa de construção de uma “estética”, um “deixar claro” daquilo que quero mostrar, de que lugar faço meu cinema? Se for assim respeito, mas penso desnecessário. Você é maior que isso.
O roteiro Mateus, creio, que para um diretor seja sempre uma tarefa difícil. A Ilha possui um bom roteiro, mas a temática é ainda melhor, e nisto você acerta. E nos captura profundamente. O tema que você elege é interessantíssimo e você sabe levá-lo, salvo alguns percalços. Conduzi-lo sobriamente, com profundeza e seriedade que ele merece. Ouso dizer que você não é, ainda, um diretor da palavra; palavra falada, diálogo. As suas imagens gritam Mateus. Elas falam por você. Falam por si. Talvez, por isso, pela força extrema que suas imagens carregam, sinto desnecessária a palavra, pelo menos o verbo convencional, o diálogo nu simples do cotiano.
Tuas imagens e o silêncio estrondoso que elas carregam, possivelmente sejam tua marca. Tua assinatura. Talvez elas compunham tua mais nobre sensibilidade artística. Assim, nos parecem equivocadas algumas trilhas sonoras; em alguns momentos tua Ilha não precisa delas. Penso que podes procurar um parceiro que respire junto contigo, e se for para colocar um som que não seja o “natural” que seja ele cuidadosamente pensado, bordado como uma leve dobradura para servir como moldura à tuas imagens.
Mateus você pode e deve ousar. Experimentar sem medo. Não subestime a plateia. A Ilha é a ponta de terra de uma montanha submersa do muito que há de vir. Tua experiência em desbravar, em fazer cinema na Amazônia te capacitará para encontrar mais terra a ser cultivada, a ser filmada. Sinto falta de outros olhares que te ajudem a compor tua cena. Parceiros já existem e outros virão. Tua vontade, desejo, ânsia de artista criador me deixa extremamente feliz e emocionado… Fazer cinema na Amazônia é um desafio e eu te felicito por isso! E você é feliz! Por isso.
Ao embrenhar-se nessa floresta densa e sorrateira da sétima arte tua fotografia noturna e mais escura proporciona belas e surpreendentes imagens. E nos rende em contraposição com outras na clareza do dia, como a da carroça indo numa estrada, vista de um ângulo de quem vai sentado nela.
A Ilha recebe sua merecida carga quando surge Silene. Ela é a Ilha. Sinto contudo uma ausência de trabalho de voz para essa personagem, talvez um timbre mais grave, que em dados momentos ela alcança. No entanto, isso não é suficiente para comprometer o trabalho da atriz. Ver Rosilene Cordeiro na tela de cinema não é uma grata surpresa. É um choque, aliás eu já sabia disso, já previra que ela devia fazer cinema quando a vi em cena no teatro, atuando como “Fosca” numa produção de época. Vejo na tela uma atriz intuitiva, muito consciente do seu trabalho, guiada por algo que ela pensa e tecelã da arte de interpretar como é, habilmente constrói, mas que às vezes penso nem mesmo ela tem dimensão do que faz. Sinto que de alguma forma esta profissional ainda esteja em sua zona de conforto, ainda sim, seu olhar e respiração me capturam. Sua presença cênica é invasora. A primeira travessia nunca é fácil! Bem vinda às telas Rosilene da Conceição Cordeiro, você tem Trabalho pra isso!
Em algum momento correu-se o risco da personagem ser maior que o filme, e talvez seja, não propositalmente, mas como já disse se isso ocorreu é porque ela é a Ilha, ela é a protagonista. É provável que daí surja uma grata e feliz parceria: de um diretor e sua musa. E por que não? Quantas parcerias felizes como esta já não foram feitas no cinema antes? Então, digo: trabalhem mais. Trabalhem logo! Façam mais cinema Mateus e Rosilene! Investiguem, apropriem-se. Esparramem- se na tela da sala escura.
Porque ao contrário da cena onde a câmera numa outra travessia focaliza a atriz de corpo inteiro no barco, esta não tem cara de ser a cena final. E por isso me pergunto: por que continuar o filme depois disso? Por que não encerrar ali? Ou por que não colocar a sequencia posterior antes desta, onde mostrando Silene no barco, se narra “ela é a ilha”!?
Confesso, saí da sala impactado, entrei querendo ser capturado, e a partir de certo momento fui, esqueci da amiga na tela. Saí sem vontade de falar; com a imagem forte do homem acorrentado sustentando, carregando a ilha; as mortes; os afogados. Mais que nos bebês mortos jogados no mar, pensava nos desgraçados afogados naquelas águas de travessia. E uma ilha é também lugar de travessias, e de travessias eu entendo. Quantos homens afoguei em minhas travessias?… Quem e quantos serão os mortos que sustentam nossa porção de terra humana? Quem são nossos Inspiradores? Mestres? Construtores? Carregadores? Quem afogamos para sobreviver? Ou no que nos afogamos para viver?
Ilha, porção de terra cercada de água. Sempre um desafio. Lugar normalmente de acesso não muito fácil, e de onde é difícil de sair também. Talvez, sua ilha seja você mesmo “menino diretor”. Felizmente e paradoxalmente também posso lhe dizer na efusão de quem encontra: “Terra à vista!” Continue sua procura e quando encontrar seu torrão GRITE! Pois, a procura é intensa e constante, mas recompensadora, porque na procura encontramos nosso pouso seguro para continuarmos buscando.
Talvez, uma parte deste continente já tenho encontrado: as tuas “imagens- criações desaguadas por um meio de um projetor numa tela de uma sala escura…” Para encontrar o restante de tua ilha continue buscando, esse é o melhor caminho para aprimorarmos nossa arte. É possível que essa busque lhe mostre caminhos maiores ou melhores. E encontrando- Se encontrará sua Arte. Encontrará sua Ilha. Se é que assustado você já não a tenha encontrado e esteja com medo de se afogar.
(Mailson Soares é ator, diretor teatral e dramaturgo, de Belém/PA)
Disponível em http://danoiteescuradamariapreta.wordpress.com/2013/10/28/carta-de-mailson-soares-sobre-a-ilha/ acessado em 28/10/2013
Comentários
Um trecho da carta me chamou mais a atenção: quando diz que você talvez não conheça todo o seu potencial. Fico pensando nos possíveis motivos: deficiência técnica, bloqueio pessoal ou a falta de um diretor que saiba trabalhar esse "ir além"? Ah, se eu fosse esse diretor!... Faria surgir a tempestade...